© Luzia Moniz
“E é preciso trazer os políticos e os decisores ao debate, porque só eles podem adotar políticas de alteração do atual status quo discriminatório.”
O Padrão dos Descobrimentos, que representa a era da expansão marítima portuguesa, a dos “descobrimentos”, ou seja, dos encobrimentos. Esse monumento simboliza o início de um processo que levou aos mais hediondos crimes contra a Humanidade: a Escravatura e o colonialismo, praticados de forma bárbara por Portugal, país com particulares responsabilidades na exploração e pilhagem de África e dos africanos.
Outra hipótese seria o Rossio, mais concretamente o Largo de São Domingos, que é hoje lugar de homenagem ao massacre dos judeus, porque este espaço foi uma espécie de Mutamba, ponto de Encontro dos africanos nos séculos XVIII e XIX.
A terceira escolha seria o Poço dos Negros para recordar que, em 1515, o rei D. Manuel I escreveu uma carta a declarar que se devia deixar de largar os cadáveres de escravos nas lixeiras e mandou cavar uma vala para onde os corpos dos escravos fossem atirados e cobertos com cal, transformando a zona numa espécie de cemitério dos horrores. A outra escolha é a Praça do Comércio .
Entre esses, escolho o Praça Comércio ou Terreiro do Paço, porque nesta zona da cidade funcionou a Alfândega de Lisboa, da qual fazia parte a Casa dos Escravos. Ali desembarcavam escravos africanos, a partir do século XVI, constituindo-se um dos principais mercados de escravos. Aliás, toda a zona ribeirinha, do Cais do Sodré ao Campo das Cebolas, foi zona de desembarque e de comércio de escravos.
Começava por mudar o nome para Praça de África ou Praça dos Africanos, como forma de reparação histórica, homenageando os milhões de africanos arrancados à força das suas terras, que ali aportaram e foram desumanizados, transformados em mercadorias, despojados de qualquer dignidade naquela zona durante séculos, bem como aqueles que adoeceram nos navios e foram atirados ao mar ainda vivos, e os que morreram nos navios também deitados ao mar sem puderem desembarcar no Terreiro do Paço. No espaço que foi a Alfândega, que incluía o Mercado de Escravos, nesse lugar onde os negros foram despojados da sua essência, proponho a construção de um Centro de Cultura e de Arte Africanas, com um espaço dedicado à história daquele lugar, a história da escravatura e da dominação colonial, ou seja, outra narrativa da História de Portugal. Seria um ato de reparação e simbólico de restituição da dignidade que lhes fora retirada.
Há falta de debate, porque Portugal, sobretudo o poder político, insiste na narrativa retrógrada e reacionária dos Descobrimentos, dando continuidade à Era dos Encobrimentos, insistindo em falar em encontro entre povos o que, à partida, inquina qualquer debate sério e objetivo. E é preciso trazer os políticos e os decisores ao debate, porque só eles podem adotar políticas de alteração do atual status quo discriminatório. Infelizmente, a narrativa histórica do Portugal de Abril é a mesma do Portugal salazarista. Neste aspeto, nada mudou.
As pessoas racializadas têm lutado diariamente para contribuir para que esse debate se mantenha na agenda, mas, dada a invisibilização a que estão sujeitas, não tem sido um processo fácil. Em Portugal, a esquerda demitiu-se há muito tempo do papel de trazer para o debate, para o centro da política, a discriminação racial e suas origens, o passado nada épico de Portugal, a igualdade racial, uma velha questão há muito reclamada pelas comunidades racializadas. A direita e a extrema-direita, dando continuidade à narrativa salazarista, insistem na interpretação da história batendo-se pela preservação dos seculares privilégios epidérmicos brancos. Mas as pessoas racializadas estão disponíveis para esse combate. E há muitos exemplos, como a Joacine Katar Moreira, a Cristina Roldão, a Carla Fernandes, o Mamadou Ba, os coletivos de negras e negros, africanos e afrodescendentes, entre outros.