© Marta Lança
“Atravessamos ruas e avenidas cujos nomes são pontos da cartografia colonial.”
Uma vez que tem trabalhado sobre a
toponímia de Lisboa, que exemplos elege com maior relação com a colonialidade
na configuração da cidade?
Um pouco por todo o lado, dispersos pela
capital, atravessamos ruas e avenidas cujos nomes são pontos da cartografia
colonial, que continuam a reproduzir a relação colonial de Portugal com alguns
territórios africanos. Mas dentro daquilo a que poderíamos chamar,
genericamente, “discurso urbano pós-colonial português”, é importante estabelecer algumas
distinções. Há as ruas, praças e avenidas que levam nomes que remetem para a
primeira fase da expansão colonial. Em Belém, por exemplo, na sequência da
Exposição do Mundo Português, realizada em 1940,
a toponímia dessa zona de Lisboa recebeu nomes de navegadores, como a Avenida
Vasco da Gama, as ruas Cristóvão da Gama, Jerónimo Osório ou Fernão Mendes
Pinto; de historiadores que registaram os seus “feitos”, como as ruas Damião de
Góis e Fernão Lopes de Castanheda; de missionários da época, como Rua São
Francisco de Xavier (missionário, consagrado pela posterioridade católica como
Apóstolo do Oriente e Santo Padroeiro de Goa); ou até mesmo de um dos reis que
impulsionaram a ampliação do Império Português: Praça D. Manuel I. Além disso,
em Belém existe ainda uma Praça do Império, as Praças de Goa, de Damão e de Diu
e a Rua Soldados da Índia.
Depois, há os
locais que celebram a expansão colonial portuguesa e a sua obra supostamente
“civilizadora”, através de nomes de ruas que prendem Lisboa à história das excursões dos exploradores e
dos colonos, que celebram conquistas e rapinas coloniais oitocentistas (Paiva
Couceiro, Mouzinho de Albuquerque, General Roçadas, etc., na zona da avenida
Morais Soares e Penha de França) e nos dão conta
das diferentes fases do reforço e consolidação do Império Português, através da
reivindicação da propriedade e da posse de certas regiões face a outros impérios, no
contexto da Conferência de Berlim e do chamado Mapa Cor-de-Rosa.
Se
avançarmos
até ao Chiado, encontramos as
Ruas Capelo e Ivens que, em setembro de 1885 (mês da chegada a Lisboa dos
exploradores Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens) vieram substituir,
respetivamente, as anteriores Travessa da Parreirinha e a Rua de São
Francisco. O mesmo Edital que determinou essa renomeação criou também a Rua
Anchieta (ex-Rua da Figueira) e a Rua Serpa Pinto (ex-Rua Nova dos Mártires),
também eles exploradores dos territórios africanos, nomeadamente as zonas
compreendidas entre Angola e Moçambique, onde se incluem as bacias
hidrográficas do Zaire e do Zambeze.
“Um pouco por todo o lado, dispersos pela capital, atravessamos ruas e avenidas cujos nomes são pontos da cartografia colonial.”
Explique a história do antigo Bairro das Colónias, em
Arroios.
Faz parte dos lugares que se limitam a mapear a geografia
do Império português, o atual Bairro das Novas Nações, antes do 25 de Abril
denominado Bairro das Colónias, está situado nos terrenos da antiga Quinta da
Mineira ou da Charca. O Bairro das Colónias
começou a ser planeado (com a respetiva divisão dos lotes a construir) na década de
1920. Na década seguinte arrancou a construção dos edifícios,
a maioria dos quais desenhados ao estilo modernista e Art Déco. Embora
a primeira proposta toponímica apontasse para a necessidade de homenagear os
nomes mais importantes do colonialismo português, ficou
decidido que os arruamentos deveriam levar os nomes das então colónias
portuguesas (se dúvidas havia relativamente à imbricação
entre o facto colonial e a construção e funcionamento do poder político do
Estado, julgo que este exemplo ajuda a resolvê-las).
A sua praça principal (localizada na confluência das
ruas Ilha do Príncipe, de Timor, de Moçambique e de Angola) começou por ser
chamada Praça das Colónias, depois, por deliberação camarária de 6 de
Julho de 1933 (apenas um mês depois da primeira atribuição), passou
a Praça do Ultramar, até que, por edital de 17 de Fevereiro de
1975, assumiu o nome atual: Praça das Novas Nações (a mudança das toponímias, como se
vê, é a prova de que a reestruturação territorial do Portugal pós-colonial
não é assim tão recente), agora com o objetivo declarado de homenagear as cinco
novas nações africanas: Guiné, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola.
As ruas que irradiam direta ou indiretamente dessa
praça levam todas nomes das ex-colónias portuguesas (e não só): Rua de Angola, Rua de
Moçambique, Rua da Guiné, Rua
do Zaire, Rua da Ilha do Príncipe, Rua de Cabo Verde, Rua da Ilha de São Tomé, Rua de Macau, Rua de Timor. De
certo modo, estes nomes formam uma espécie de herança toponímica, linguística e
política da
expansão europeia, e remetem, por isso, para o passado colonial. De resto, uma
parte do comércio
existente nesse bairro conserva a sua identidade colonial originária. Por exemplo,
a Farmácia Colonial e a oficina de automóvel Auto-Colonial.
Em termos de comércio, também se percebe esta herança
colonial?
Há
variadíssimos locais de Lisboa que carregam a marca do Império Colonial Português e remetem para o Estado Novo e
o domínio colonial: Restaurante Polana (Avenida de Roma), Supermercados Bilene
(São Domingos de Benfica), Restaurante Império (Avenida Almirante Reis),
Companhia de Seguros Império (hoje Império
Bonança), o Restaurante Zambeze (Alfama; segundo a gerente, Vera Barbosa,
“temos muitos clientes portugueses que vieram retornados de Moçambique e que
nunca mais voltaram lá – alguns por trauma, outros por opção – e gostam de
vir aqui porque se sentem num ambiente moçambicano e comem a comida que
comiam lá”). E outros onde encontramos algumas marcas quase arqueológicas: na rua da Prata, por
exemplo, num dos seus edifícios ficava o edifício-sede da Companhia Colonial de
Navegação e noutro o Banco Nacional & Ultramarino.
Na
verdade, são variadíssimos os vestígios coloniais, palpáveis na nossa vida
social, política e económica, e
não apenas em Lisboa: noutras regiões do país encontramos mais de um Hotel Império (e.g. Torres Vedras),
Restaurante Moçambique (Matosinhos), Restaurante A Moçambicana (Braga),
Restaurante O Retornado (um em Chaves, outro no Entroncamento) e, caso único
talvez em Portugal, a Rua
Vítimas da Guerra Colonial, logo à entrada da Costa da
Caparica.
Porém, o local que mais
explicitamente lembra a expansão colonial, a afirmação do império e o racismo subjacentes, é a Casa do Preto, uma loja de
queijadas tradicionais localizada em Sintra, embrulhadas num papel impresso com
o desenho de um negro vestido de criado.
Existem topónimos referentes a figuras africanas e da
luta anti-colonial?
Raros,
ainda assim existem. Por exemplo, a Avenida Eusébio da Silva Ferreira
(futebolista português de
origem moçambicana), inaugurada em 2015, que fica num troço da Segunda Circular
(em Lisboa, passa à frente
do Estádio da Luz) e Rua Matateu, ex-futebolista (em Lisboa); a Rua Óscar Ribas,
escritor e etnólogo,
figura cimeira da cultura angolana (em Cascais); a Avenida Raul Indipwo
(Cascais) e a Rua Indipwo (Oeiras), nome do músico e elemento do Duo Ouro Negro
(em Cascais).
Ou
ainda topónimos de políticos e figuras de proa da luta contra o
colonialismo: a Rua Agostinho Neto,
ex-presidente de Angola (Lumiar); Rua Amílcar Cabral, fundador do PAIGC e
cognominado pai da Independência da Guiné e Cabo
Verde (também no Lumiar); Rua Mário
Pinto de Andrade, escritor e ensaísta angolano, fundador e primeiro presidente
do MPLA (no Seixal); Ruas Samora Machel, o primeiro presidente da República de
Moçambique (em Odivelas, Loures, Vila Franca de Xira, Moita, Évora); Praça Eduardo Mondlane, um
dos fundadores e primeiro presidente da FRELIMO em Moçambique (Lisboa).
Que zona da cidade
elege, que manifesta mais a
relação com a história colonial?
Escolho a zona de Lisboa onde
passo todos os dias, no Vale de Santo António, onde existem as Avenidas Mouzinho de
Albuquerque e General Roçadas (a indicação da respetiva placa toponímica
descreve-o como “Herói das Campanhas de África 1865–1926”) que desembocam ou irradiam da Praça Paiva Couceiro. Trata-se
de topónimos impregnados da pior cultura colonial, referentes a um período
terrivelmente racista e de banalização do colonialismo, considerado a idade de
ouro da conquista imperialista. São ruas que honram os piores agentes do
colonialismo português, com obras onde defendiam abertamente o racismo contra
os negros e que, por isso, humilham as suas vítimas, incluindo as atuais.
Estes nomes – e outros das ruas adjacentes à Avenida Mouzinho de Albuquerque,
como Ruas Artur de Paiva, João de Azevedo Coutinho, Aires de Ornelas (o qual,
como é sabido, era um respeitado admirador das ideias políticas de Charles
Maurras), Eduardo Galhardo – representam uma cultura abertamente racista, que
sobreviveu ao 25 de Abril. Estes militares e administradores coloniais foram
responsáveis por algumas das páginas mais sombrias do nosso passado e por isso,
mantê-los na toponímia lisboeta, constitui uma forma de confirmação simbólica
(através da materialidade da toponímia) da conquista e dominação coloniais. É
importante não esquecer, por outro lado, que a toponímia portuguesa nas
colónias africanas foi sempre um instrumento político utilizado pelas
autoridades metropolitanas para fundar e reforçar a nossa presença naqueles
territórios. Isto mostra-nos a textura do legado colonial, a materialidade
granulada das mensagens toponímicas.
E como sugere que
essas ruas e toponímias sejam memorializadas ou descolonizadas?
Na minha opinião, esses nomes
deveriam desaparecer da toponímia portuguesa. Não acontecendo isso, creio que
tal presença deveria ser contrabalançada com marcas memorialísticas que
fizessem referência ao sofrimento dos povos africanos, nomeadamente aqueles que
foram chacinados nesses actos de conquistas. Talvez um memorial, um mural ou
uma estátua às vítimas desconhecidas da violência colonial, ou algo que reivindicasse
uma outra herança: a das lutas anticoloniais. Eventualmente, poder-se-ia
organizar em algum espaço da Câmara Municipal de Lisboa, naquela freguesia, uma exposição que
contextualizasse, enquadrasse e explicasse as histórias associadas a todos
esses nomes de militares e conquistadores.
No seu entender,
tem-se debatido convenientemente as políticas de memória da cidade?
Nem por isso. Tanto assim que, na discussão do infelicíssimo e agora chamado Museu da Descoberta, esta discussão sobre a toponímia colonial, em particular a explicitamente racista, nunca foi levantada como prioritária ou precedente à questão museológica. Nessa altura, precisamente para chamar a atenção para a necessidade de começar por discutir essa toponímia antes de pensarmos em qualquer museu, publiquei na revista Sábado um artigo longo intitulado “Toponímia Colonial: As Homenagens Urbanas a Nomes do Ultramar”, em 17 de Maio de 2018. Enquanto não fizermos essa discussão, continuaremos a transmitir uma ideia de glória do império colonial, continuaremos a reproduzir a léria lusotropicalista do excepcionalismo do colonialismo português e a, consequentemente, inculcá-la na memória histórica de Portugal.