© Trish P. Schultz
"Só as minhas experiências pessoais com o racismo – enquanto artista, enquanto mulher, enquanto negra em Hamburgo – seriam suficientes para preencher um livro inteiro."
Quando pensa na história colonial e no momento presente, que lugares e espaços de Hamburgo é que lhe ocorrem espontaneamente?
O porto, com a Speicherstadt (Cidade dos Armazéns), é, para mim, o ponto principal. O porto de Hamburgo foi o centro de todo o comércio colonial. O açúcar, por exemplo, que vinha das plantações, era trazido para cá para ser processado. Eramos nós – e ao dizer “nós” refiro-me ao meu povo – que, enquanto escravos, plantávamos e cuidávamos da cana-de-açúcar. O algodão que aqui chegava era depois enviado de volta para África, sob a forma de roupa barata.
Também se realizou a exportação de aguardente e de armas. Para transportar pessoas escravizadas para as Caraíbas também eram usados navios alemães.
Como é que Hamburgo, no que diz respeito ao seu passado histórico colonial, apresenta atualmente esses lugares? No marketing que promove a cidade, por exemplo? O que pensa a esse respeito?
São poucos os locais em redor do porto e da Speicherstadt que efetivamente revelam essa história colonial. Qual a origem da maior parte dos rendimentos desta metrópole colonial que alberga o maior complexo de armazéns do mundo? Não é fornecida qualquer informação acerca dos locais de onde vieram as matérias-primas e mercadorias nem acerca das condições em que estas foram obtidas e produzidas. Quantas mortes resultaram daí, quantas pessoas sofreram com este comércio?
Também não é mencionado o facto de ter sido a partir do porto de Hamburgo e nos navios da companhia de navegação de Adolph Woermann que um grande número de soldados foi enviado para o Sudoeste Africano Alemão. E isto apesar de eles terem estado envolvidos no genocídio cometido contra os Ovaherero e os Nama. A Universidade de Hamburgo – outrora o Instituto Colonial – e o antigo Museu de Etnologia, que agora é conhecido pelas iniciais MARKK, de Museum am Rothenbaum – Kulturen und Künste der Welt) [Museu de Rothenbaum – Culturas e Artes do Mundo], têm vindo, pouco a pouco, a fazer tentativas muito ténues no sentido de mudar esta imagem tendenciosa da realidade. No entanto, os efeitos são muito reduzidos. Esta é a minha opinião.
Na sua opinião, como se deverá lidar hoje em dia com estes vestígios do colonialismo presentes no espaço urbano?
Atualmente, o Monumento a Bismarck tem sido tema de acesa discussão. Não sou radical, não acho que os monumentos mais antigos devam necessariamente ser derrubados. A história tem de ser contada, mas é importante que se conte a história toda. De que modo se pode relatar melhor a história, mesmo que através da grandiosidade deste monumento enorme... Essa é uma questão cuja resolução confio aos peritos. No entanto, é certo que diversos pontos da cidade, por exemplo o local onde em 1918 foi fundado a Afrikanischer Hilfsverein (Sociedade de Ajuda a Africanos) – uma associação de auto- e entreajuda –, deverão ser marcados e explicados de um modo mais completo e abrangente.
Que meios usaria para transmitir essa informação?
Há 42 anos que vivo na Alemanha. Cheguei aqui como artista, como uma estrela musical. Tenho dois filhos afro-alemães, entretanto já homens, mas ainda jovens. Quando estava a educá-los, percebi que havia muito pouca história afro-alemã que lhes pudesse transmitir. Assim, comecei a pesquisar e, ao longo dos anos, fui fazendo leituras. O material disponível é muito pouco. É claro que há pessoas que escreveram livros, mas esse conhecimento deveria ser posto à disposição dos cidadãos de Hamburgo. E de uma forma que seja compreensível, sem apresentar os assuntos de um modo vincadamente académico, para que a maioria das pessoas não diga: “Oh, não, isso dá-me demasiado trabalho a ler.”
As imagens valem mais do que mil palavras: tal como a arte, as imagens são muito importantes. Transportam em si pensamentos, impressionam e deixam marcas importantes. Gostaria de poder transmitir essa história negra – afro-alemã –, bem como a história da resistência, e proporcionar um espaço para isso. Fui recolhendo muito material que poderia ser apresentado. A segunda maior comunidade afro-alemã da Alemanha precisa de uma narrativa histórica e também de lugares onde possa ir, onde as pessoas se encontrem e aprendam a sua história. Precisa de um local onde se possa ter acesso à informação, às estatísticas, biografias, imagens, à história, às referências bibliográficas, etc. Gostaria de construir um pavilhão onde o material recolhido fosse disponibilizado ao público da cidade de Hamburgo.
E, na sua opinião, qual o local mais adequado para um tal pavilhão?
Algures no porto ou na HafenCity, onde atualmente se está a construir. Uma outra possibilidade, que muito me agradaria, seria a área em redor do Museu da Emigração, em Veddel. Há lá muito espaço, as infraestruturas existem. Há os transportes públicos e as pessoas já estão habituadas a lá ir. E continuaria, ainda assim, a ser próximo do porto. Seria uma boa solução.
Até que ponto encara também outras possibilidades de se desenvolver espaços descolonializados e de empoderamento, mas que não envolvam necessariamente o confronto com os antigos vestígios do colonialismo na cidade?
A história precisa de ser contada, para que as pessoas possam estar informadas. A verdade é que muitas pessoas não fazem a mais pequena ideia do que se passou. Nada sabem acerca dos “jardins zoológicos humanos” em Hamburgo, nem da história colonial em geral. Isso tem de ser relatado. É também importante que as pessoas com antecedentes migratórios africanos, que integram comunidades negras, relatem a sua própria história e promovam a própria formação cultural. Como artista, apercebo-me também de que, através do canto, da dança, da poesia spoken word, da arte e de diversos modos de expressão, existem muitas oportunidades de tornar acessíveis tanto a história negra como as respetivas experiências. Desde há décadas que os eventos do Black History Month proporcionam uma oportunidade ideal para que isso aconteça.
Quero também falar de racismo em Hamburgo, porque muita gente acha que isso já não existe. No entanto, só as minhas experiências pessoais com o racismo – enquanto artista, enquanto mulher, enquanto negra em Hamburgo – seriam suficientes para preencher um livro inteiro. Estes temas precisam de ser abordados! Podem ir do racial profiling até à razão pela qual os negros têm dificuldade em encontrar habitação, passando pelo facto de permanecerem mal representados não só nos bairros onde estão as sedes do poder político, mas também nas escolas e na Polícia.
É importante abordar isto para se conseguir aqui algum reconhecimento na sociedade. Face às posições cada vez mais assumidas por uma direita radical, que devem ser combatidas, coloca-se também outra questão: se eu for vítima de racismo, a quem devo reportar isso? Se me insultarem em plena Mönckebergstraße, se me atirarem coisas, que devo fazer? Mesmo que já antes tenha tido essa experiência uma centena de vezes, com quem posso falar a esse respeito? Na comunidade branca não se experimenta isso de modo tão acentuado, mas ainda assim não se pode minimizá-lo. A violência e os insultos não têm diminuído, bem pelo contrário. Tenho 63 anos de idade e sinto que atualmente, em termos de racismo, se tem regredido.
Tradução: Paulo Rêgo