[1] O Batuque (Batuku ou Batuk em crioulo cabo-verdiano) é um género musical, um património cultural e, também um género de dança de Cabo Verde. [Nota da entrevistadora]
© Luís Simões
“Um sinal de construção de novas memórias seria reconhecer que o 25 de abril nasceu em África.”
O Padrão dos Descobrimentos e a Estátua do Marquês do Pombal.
Entre muitos que haverá por aí, escolho-os pelas seguintes razões: vieram-me logo à mente e porque ambos são espaços à volta dos quais se constrói e se vende uma imagem
mítica do país. Quer através de uma história oficial que romantiza
sobejamente os Descobrimentos e os feitos do Marquês de Pombal (lembrar por exemplo as declarações problemáticas do presidente Marcelo
Rebelo de Sousa na ilha de Gorée em 2017, sobre a abolição da escravatura), quer em relação à turistificação acrítica desses lugares, que tem silenciado e esvaziado outras histórias. Acresce ainda que a estátua do Marquês de Pombal, que está no topo da Avenida da Liberdade, tem sido ponto de
encontro para algumas manifestações antirracistas realizadas nos
últimos anos em Portugal. A ocupação de corpos negros desse espaço é, em si, um ato de autorreparação
e de insurgência que confronta a estátua e a cidade com uma presença de
afirmação, que nunca foi desejada.
Por outro lado, estes dois espaços configuram-se com narrativas de
exaltação do passado colonial, estruturando uma espécie de “identidade nacional” que exclui, precisamente, muitos nascidos cá e que
não se reveem nessas narrativas.
Os heróis e os feitos históricos que o Portugal branco escolhe glorificar, causam violência nos portugueses negros e não só, rompendo com qualquer tipo de possibilidade de fazer comunidade juntos.
"Um sinal de construção de novas memórias seria reconhecer que o 25 de abril nasceu em África.”
Por exemplo o hino Nacional. Os hinos são também lugares de memória. São espaços ou a ideia de um espaço que se imagina. São a voz pela qual a nação soberana se diz e se
afirma, como elementos aglutinadores de todos os que habitam a nação. O hino
português exclui. É colonial além de patriarcal, como a maioria dos hinos
nacionais.
Não tenho
nenhuma proposta concreta. Tem havido muita discussão e um certo medo no ar,
neste norte global, em relação ao derrube das estátuas e à destruição de monumentos. Esse medo, vejo-o como “agonia” da besta que, pressentindo o fim do velho
mundo, se contorce, debatendo-se violentamente para não deixar o novo mundo
surgir. Mal sabem estas bestas que os corpos que “monstrificaram” têm memória
longa. Seria interessante estar mais atento às propostas políticas emancipatórias e
ousadas, plasmadas nesses atos que agora são chamados de “vandalização”. Se calhar, a vandalização nada mais
é do que o exercício da política por outros meios, de outro modo.
Neste sentido, pode ser interessante a própria destruição de um
monumento ou a decapitação de uma estátua com a sua consequente preservação,
assim destruídas no espaço público, como a produção atual de um outro discurso. Não sei. Há muitas ideias... outras mais “pacíficas”. Falta vontade
política, do Estado mas, também, da sociedade.
Acha que tem havido reflexão interessante em torno das políticas de memória
na cidade?
Lembro-me de uma discussão
sobre uma pintura no Bairro dos Navegadores. A imagem era precisamente a
de um navegador. Terá sido mandada pintar pela Câmara Municipal de Oeiras.
Algumas pessoas do bairro protestaram, mas a sua voz não foi ouvida. Faltam
discussões concretas, mas também falta ouvir e pôr em prática o que as pessoas
dizem e têm dito. O primeiro passo devia ser
um debate sério onde se reconheça a necessidade de pensar criticamente a
colonialidade, não só dos espaços, mas sobre toda a narrativa deste território
físico e imaginário chamado Portugal. Os espaços, em si, falam, são discursos
atuais sobre o que é este país. Para as pessoas e os movimentos negros, a
questão da memória sempre foi um aspeto importante da luta. É graças a essa
produção de memórias, como húmus de
conhecimentos, que se tem avançado e resistido. No seio destes movimentos têm-se gerado verdadeiras políticas de memória a partir
de dentro. Cito, por exemplo, o caso do Batuku [1], que é, em si, uma instituição da memória coletiva nos
bairros periféricos de Lisboa. O Batuku sempre foi político, insurgente e
emancipatório. É nesses lugares não hegemónicos, onde a política do Estado não
chega, que se discute e se vivencia, no quotidiano, a memória como política de
vida e como forma de fazer comunidade. É aí que tem havido discussões interessantes. Importa também referir o
Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, proposto pela Djass - Associação de Afrodescendentes ainda que eu não goste do objeto artístico que foi escolhido. As reflexões interessantes e que possibilitam
mudança existem sim, mas vêm de baixo, dos movimentos, das comunidades.
Sugeria que se levasse também esses debates para os "bairros", de forma comprometida e não como mero “engodo”. Acredito que a arte pode ser a resposta para muitas dessas questões. Os artistas negros podem dar um grande contributo sobre como construir “memórias do futuro”, nos dias de hoje. Eles e elas estão aí e têm criado possibilidades, apesar da precariedade. As pessoas precisam também de existir no imaginário e os artistas negros podem ajudar-nos a vislumbrar horizontes comuns, ensinando-nos essa arte ancestral de ser “porosos a todos os fôlegos do mundo”, como dizia Césaire. Podia-se também criar outras memórias sobre o passado. Lembro-me desta frase de CLR James, dita em outro contexto, mas que me parece útil para responder a esta questão: “these are my ancestors, these are my people, they are yours too if you want them”. Um sinal importante de construção de novas memórias seria, por exemplo, reconhecer que o 25 de abril nasceu em África, e reconhecer também Amílcar Cabral, outrora chamado de terrorista, como figura importante na história da democratização deste país. Existe também o Campo de Concentração do Tarrafal, aquela antecâmara da morte lenta, que poderia hoje constituir uma memória comum de luta. Sou, porém, incrédulo.
[1] O Batuque (Batuku ou Batuk em crioulo cabo-verdiano) é um género musical, um património cultural e, também um género de dança de Cabo Verde. [Nota da entrevistadora]