[1] AFRO-PORT: Afrodescendência em Portugal: sociabilidades, representações e dinâmicas sociopolíticas e culturais.
Um estudo na Área Metropolitana de Lisboa. [Nota da entrevistadora ]
© Sofia Nunes
“A Área Metropolitana de Lisboa enquanto entidade geográfica e social é colonial.”
Que espaços escolheria para memorializar a colonialidade na Grande Lisboa?
Lisboa foi efetivamente uma capital imperial durante centenas de anos, por
isso, não há volta a dar na afirmação colonial da sua história contemporânea (e não só). Nos últimos cem
anos, e em específico no Estado Novo, os esforços de narrar a Capital como
colonial deixaram de ser exclusivamente monumentalizados, mas foram também
expandidos na sua trama urbana.
A “Exposição do Mundo Português”, em 1940, serviu de mote para a
reconversão urbanística da antiga Vila de Belém, eliminando uma Vila inteira, seus moradores e
meios de produção. Desmontados os pavilhões da Exposição, o Padrão ou o Jardim
da Praça do Império são alguns dos elementos que ficaram para a cidade.
Se falarmos de elementos monumentais, a estatuária, peças de coleções de
museus e designações urbanísticas (como do Bairro das Colónias / Ultramar / das
Novas Nações) sinalizam facilmente a narrativa colonial de Lisboa e consubstanciam-se
como alvos de uma crítica contemporânea decolonial e contra a barbárie, a verdade
dessa narrativa é muito mais densa e intrincada.
Se olharmos, por exemplo, para a toponímia atribuída na década de 50 do século XX aos arruamentos
da Penha de França, o elemento agregador é o de militares ou figuras que
delimitaram a política portuguesa em África (Os Africanistas), nomes
como: Paiva Couceiro, Eduardo Galhardo, Artur de Paiva, Francisco Pedro Curado,
Mouzinho de Albuquerque, Teixeira Pinto, etc. Quase por
ironia, a investigação apurada dessas personagens permite-nos chegar a histórias de líderes africanos não
revelados e explorados nas várias narrativas históricas formais, curriculares
do país, de Gungunhana aos vários sobas sujeitados a Eduardo
Galhardo.
Assim, a penetração colonial no crivo urbano da cidade e metrópole tem exemplos e
densidades múltiplas, efetivas e totais, muito para além dos modelos e símbolos, mas também por exemplos que vão da toponímia da Penha de França à nomenclatura de “Navegadores” de um bairro de realojamento de
população racializada.
Que lugar mais manifesta a relação com a
história colonial e porquê?
Apresento esta tendência global, transversal e invariável de Lisboa enquanto espaço de memorialização da colonialidade; contudo, o aspecto que mais sobressai nessa questão é a própria forma, organização e funções da Área Metropolitana. A Área Metropolitana de Lisboa enquanto entidade geográfica e social é colonial.
Há uma relação directa do seu crescimento populacional e geográfico,
enquanto metrópole, com o processo pós-colonial, adquirindo forma e funções
coloniais ao mesmo tempo. Não devemos esquecer que, à data do 25 de abril e
ainda antes da independência das colónias, a população de Lisboa era de
cerca de 750 mil habitantes. Os concelhos vizinhos e não só, não chegavam a ter
sequer metade da população de hoje. Eram arrabaldes, vilas, zonas “saloias” às quais não se dava
ainda o estatuto de subúrbio.
E atualmente ?
Hoje, com três milhões e cem mil habitantes, de lá para cá, o
espaço enquanto metrópole preencheu-se essencialmente por movimentos
migratórios, alguns anteriores à revolução, nas décadas de 50 e 60,
vindos do interior; das centenas de milhares de retornados a meio da década de 70; de
imigrantes de antigas colónias portuguesas, a partir do fim dos anos
70, década de 80 e 90; e de uma nova geração de migrações mais difusa, a
partir da década de 90 e século XXI, de vários países africanos, Ásia, Europa
de leste e Brasil.
Onde foi sendo fixada essa população migrante e racializada?
Ora, a população racializada, retornada e os imigrantes das novas nações
independentes (ex.: colónias), assentaram nos vazios urbanos onde
terminava a malha urbana que, na maior parte dos casos, à época, situava-se já
nos limites da cidade de Lisboa, junto à Estrada Militar norte (entre Caxias
e Sacavém), ou nas redondezas e periferias de complexos industriais da Margem Sul,
da Lisnave (Almada) à CUF (Barreiro).
E, especificamente, as populações vindas de países africanos?
As migrações de países africanos, nomeadamente de Cabo Verde, antes do 25 de Abril (para a construção de obras públicas como a Ponte e seus acessos e alargamento do aeroporto de Lisboa), as suas populações ficaram sediadas dentro de Lisboa mas perto dos seus limites: Charneca do Lumiar, Olaias, Xabregas, Chelas. Como alguns estudos têm vindo a demonstrar (ver Vhils e Guterres “6 de Maio” ou o levantamento realizado pelo grupo de investigação Afroport [1]), os pioneiros dessas migrações não encontraram lugar na cidade e foram “empurrados” para os terrenos baldios mencionados, onde tiveram que construir os seus bairros.
Como se refletiu esse processo em termos de condições económicas?
Este padrão de crescimento da metrópole criou um anel em redor da cidade (Lisboa) de
populações racializadas, de ascendência de antigas colónias, que se
tornou a mão-de-obra barata, precária e sempre dispensável, dependendo dos
ciclos económicos.
Com a entrada na Comunidade Económica Europeia, o fim da industrialização como motor da economia da cidade e a passagem para uma economia de serviços, a transformação informacional da cidade implicou a libertação desses terrenos, antes periféricos, agora centrais, de modo a que servissem de infra-estruturas ao novo paradigma económico.
E os realojamentos?
Nesse movimento, e disfarçado de política social, foram realojadas dezenas
de milhares de famílias em habitação social,
interiorizada para um terceiro anel da cidade, ao mesmo tempo
que quem conseguia uma emancipação económica desses espaços (ou por
necessidade, devido ao crescimento das famílias e co-habitabilidade de
várias gerações na mesma casa) preenchia espaços mais distantes do
centro, mas baratos no mercado, como a parte da linha de comboio do concelho de Sintra, Miratejo, Corroios,
etc.
Não é por acaso, e é até crucial a aplicação em momentos do texto de forma distinta, o conceito de “cidade” ou de “metrópole”. Neste espaço onde habitam mais de três milhões de pessoas, apenas 1/6 habita em Lisboa, mas ainda assim parece ser o único lugar que merece a designação de “cidade”, como se fosse o único território com direito a imaginário, a fazer história, a ser centro. Tudo o resto, onde de facto habita a grande maioria da população, é apenas considerado continuum urbano, periferia ou subúrbio. Não é por acaso que quem aí habita refere comummente uma ida a Lisboa como “vou à cidade”. Embora se trate de linguagem quotidiana, ela é inteligente no que aporta, já que de facto “cidade” é o lugar da “cidadania” e, desse modo corriqueiro e quase informal, conseguimos sinalizar a assunção da ausência da mesma em grande parte dos habitantes da metrópole.
Então, considera que a própria configuração urbana está na base de uma
série de tendências de desigualdade?
Ora, esta forma e sistema colonial na Área Metropolitana de Lisboa é muito mais que uma
abstração, já que, nas políticas públicas em Portugal, o lugar
de partida define a qualidade das mesmas. Por isso, quem habita, vive e
sobrevive no lugar colonial da metrópole recebe determinada qualidade de
ensino, policiamento, acesso à saúde, etc; populações
já sujeitas a diagnósticos sectoriais, e ainda assim são as mesmas com
múltiplos disempowerments: desemprego, trabalho
precário, racismo, ausência de documentos de cidadania, habitação
precária ou insuficiente, dificuldade no acesso à saúde, sem direitos de
expressão cultural, etc., etc. Para mim, este conjunto de layers sucessivos e
simultâneos, definem a memorialidade colonial como um quotidiano da metrópole de Lisboa.
[1] AFRO-PORT: Afrodescendência em Portugal: sociabilidades, representações e dinâmicas sociopolíticas e culturais.
Um estudo na Área Metropolitana de Lisboa. [Nota da entrevistadora ]