[1] Projeto de reorganização urbanística de uma parte antiga do porto de Hamburgo. [Nota da tradutora Gabriela Fragoso]
© Francisco Vidal
Os legados coloniais na cidade
Quando memória e desmemória se encontram, surgem fissuras, contradições e conflitos que nos fazem tomar consciência de que não vivemos a mesma História e não temos dela uma memória comum. Na Europa pós-colonial, as fissuras causadas pelos legados coloniais são cada vez mais visíveis, porque a exigência de igualdade de direitos atingiu uma nova dimensão pós-colonial que ameaça derrubar a história da Europa e os seus monumentos.
Na sequência dos protestos do movimento Black-Lives-Matter ocorridos na Europa, estátuas do espaço público foram derrubadas do seu pedestal e atiradas à água. Num ápice, as imagens das estátuas derrubadas e sujas espalharam-se pelas redes sociais e nas notícias. O que acontecera? Como era possível que monumentos do espaço público – sobretudo estátuas em memória de homens brancos, ligados à história do colonialismo e do esclavagismo – fossem despojadas da sua presença “normal” e, metaforicamente falando, expulsas do cânone?
Nas cidades europeias faz-se sentir um mal-estar que vem levantar a questão dos “legados do colonialismo”, pois é cada vez mais evidente a relação entre a “normalidade do racismo e do colonialismo” arraigada no senso comum e a violenta história do colonialismo europeu, ainda por superar. Nas cidades estruturadas a partir de bairros marginalizados e com acesso desigual à instrução, à saúde, ao trabalho e à habitação, a desigualdade não remete apenas para a questão da pobreza e da riqueza, mas também para questões de género, sexualidade, deficiência, migração e etnicidade. É por isso que neste ponto me refiro às heranças do colonialismo como sendo legados coloniais, já que não ficaram presas ao passado, mas, pelo contrário, influenciam, até aos dias de hoje, as epistemologias e também a nossa realidade social do passado, do presente e do futuro.
Com o início do século XXI a descolonização formal parecia estar quase concluída em todo o mundo. Porém as persistentes dependências do sul global relativamente ao norte global, a perseverança do racismo nas sociedades ocidentais e o silêncio contumaz dos antigos colonizadores relativamente aos crimes cometidos, comprovam que o processo de descolonização ainda não terminou. Numa perspetiva global, o racismo continua a existir e a manifestar-se como invenção colonial que, de forma específica e relacional, marca, diferencia e organiza os seres humanos de acordo com uma ordem hierárquica nos mais diversos contextos nacionais. De um ponto de vista europeu, pode ter-se colonizado e mesmo “conquistado” regiões extraeuropeias com recurso à violência; porém, isso aconteceu fora das fronteiras da Europa.
Consequentemente, os efeitos do colonialismo – p. ex. enquanto racismo – revelaram-se fora da Europa, mas não no velho continente. O Eu europeu que se imagina a si próprio e ao seu continente como esclarecido, moderno e comprometido com a igualdade de direitos, parece continuar desprovido de memória ou conhecimento dos crimes do colonialismo – como o esclavagismo de muitos milhões de indivíduos, a par de outros crimes de genocídio.
A isto contrapõe-se o facto de as repercussões da violência colonial quase não serem mencionadas nas sociedades urbanas do velho continente. É assim que, desde finais dos anos 1990, se assiste nas cidades europeias a uma revitalização da narrativa histórica de afirmação colonial, como se pode ver em Berlim, com o projeto e o debate em torno do “Fórum Humboldt” (Humboldtforum); como é evidente em Hamburgo, na atribuição dos nomes das ruas da HafenCity [1]; e como é possível testemunhar em Lisboa com a ponte Vasco da Gama (construída em 1998) na zona da Expo. E não seria difícil encontrar mais exemplos noutras cidades europeias.
A prática quotidiana de comunidades estigmatizadas pela raça e pela migração mostra bem como é imenso o desafio de conseguirem desenvolver formas de vida autónomas e fazer frente às estratégias de imobilização nos mercados de habitação e de trabalho, bem como nos espaços públicos, quer devido ao seu perfil racial, quer à obrigação de residência – mais precisamente, ao requisito de residência (em particular para refugiados) – , para já não falar da dificuldade de se estabelecerem em zonas vizinhas. As relações desiguais existentes na Europa são analisadas sobretudo no respeitante à migração e à integração no estado-nação em vez de serem submetidas a uma análise crítica do colonialismo e do racismo. Uma tal análise tornaria clara a existência de uma continuidade e de uma relação geográfica – entre as colónias e as metrópoles –, e também histórica – entre o colonialismo e o pós-colonialismo.
Por todas estas razões, o espaço urbano da Europa pós-colonial não é apenas o espaço residencial das sociedades metropolitanas – sociedades que marcam a diferença entre si próprias e o Outro –, mas também o espaço de representação e de memória que permite interpretar a história da Europa. Quer se trate de um espaço público, de um museu local ou nacional, de um jardim zoológico, de um jardim botânico ou de uma universidade – em todos estes espaços encontramos os legados coloniais espelhados nos objetos transmissores de conhecimento e nos acessos público a esses mesmos espaços. Os espaços de representação, de memória e de residência estão intrinsecamente ligados aos legados coloniais, que “desmemorizam” ativamente a violência colonial para a afirmar como história nostálgica de sucesso colonial. Assim, uma prática pós-colonial da memória está perante o desafio de tornar visível o invisível e de desenterrar arquivos tornando-os acessíveis, mas também de se ver ela própria inserida e enredada nas relações coloniais de poder.
Por conseguinte, uma prática pós-colonial da memória é uma reflexão constante sobre os posicionamentos, a desigualdade, a narrativa dividida, e sobre os fossos aparentemente intransponíveis entre os indivíduos, criados pelos legados coloniais. E, contudo, é necessário colocar o foco da análise e da descrição das relações coloniais no dia-a-dia das cidades e pôr em primeiro plano as práticas de resistência dos sujeitos da diáspora, para que seja possível desenvolver aproximações à descolonização na Europa pós-colonial.
Março 2021
Tradução: Gabriela Fragoso
[1] Projeto de reorganização urbanística de uma parte antiga do porto de Hamburgo. [Nota da tradutora Gabriela Fragoso]
Última edição em: 21/12/2024 08:41:59