De quem se esqueceu Lisboa

De quem se esqueceu Lisboa

Excerto do livro de Leonor Rosas, "De quem se esqueceu Lisboa - A luta pela inscrição da memória anticolonial e antirracista no espaço público". Analisando as condições objetivas e a conjuntura política em que as lutas e os debates se desenrolaram e igualmente as formas como a resistência e a transformação social se organizam, este trabalho procura encarar o progresso e a transformação social não como um dado adquirido mas como uma responsabilidade comum e coletiva, pela qual somos responsáveis, num processo do qual todas e todos fazemos parte. Isto não significa crer numa teleologia totalizante, imune à ação individual ou coletiva mas, pelo contrário, reconhecer a força material das ideias, a capacidade de agencialidade mesmo face ao peso da dominação e o poder transformador da ação dos subalternizados.

Leonor Rosas
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Conclusão: o caminho a caminhar

 

“[A] man ought to be so deeply convinced that the source of his own moral forces is in himself ... that he never despairs and never falls into those vulgar, banal moods, pessimism and optimism. My own state of mind synthesizes these two feelings and transcends them: my mind is pessimistic, but my will is optimistic.”

                Antonio Gramsci

            

Em dezembro de 1929, Antonio Gramsci, preso político do regime fascista italiano, escreve numa carta ao seu irmão a citação acima transcrita (Gramsci APUD Panitch 2016, 356). Emprestando a tão conhecida expressão “pessimismo do espírito, otimismo da vontade” de Romain Rolland, o filósofo procurou referir-se à aparente contradição entre a análise das condições políticas, sociais e económicas (no seu caso da Itália fascista) versus a constatação da capacidade transformadora das camadas subalternas (Antonini 2019, 43). No entanto, Gramsci transcendeu em muito esta dicotomia, encetando uma reflexão profunda sobre os mecanismos para navegar e guiar uma transformação revolucionária que superasse o capitalismo (Panitch 2016, 356). O filósofo e cientista político Leo Panitch, num ensaio de 2016 na Socialist Register, reflete sobre as possibilidades do otimismo do intelecto que, face às contingências do mundo contemporâneo e à improbabilidade de uma transformação revolucionária, valoriza as capacidades coletivas da agência humana e reflete sobre as crises da história da Humanidade (Panitch 2016, 360). Como explica o filósofo, muitos autores contemporâneos expressaram as suas dúvidas sobre a ideia de otimismo - por exemplo, Terry Eagleton -, considerando que este derivaria necessariamente de uma conceção positivista e evolucionista do mundo e que reivindicaria o conhecimento de verdades absolutas. No entanto, o autor contrapõe, explicando que a ideia relativista de que nenhum produto do conhecimento derivado das ciências sociais pode ser verdadeiro implica que também não existiriam injustiças ou violências e não faria sentido pensar em caminhos políticos alternativos (Panitch 2016, 358). Aceitar que o progresso não é um fenómeno sobrenatural ou automático, mas sim um produto da ação coletiva humana, uma responsabilidade de todos e todas, é recorrer ao otimismo intelectual que, face às contingências sociais, procura saídas e caminhos de organização de transformação social (Panitch 2016, 359).

 

Ao mesmo tempo, resgatar a ideia de progresso significa resgatar também a ideia de futuro e de esperança, recuperando as tensões entre experiência e expetativa para o campo da ação política. Zygmunt Bauman, na obra Retrotopia, explica, recorrendo ao Anjo da História que Benjamin descreveu, que a sociedade contemporânea contempla o futuro com temor e inquietude, preferindo virar-se para o passado, que imagina restrospetivamente como um paraíso perdido (Bauman 2017, 8). A nostalgia - que chama de retrotopia - tornou-se uma verdadeira epidemia global que se transformou numa condição moderna incurável (Boym APUD Bauman 2017, 7). Ao invés de se olhar ou almejar um futuro ainda por construir, parece preferível olhar para o passado, transformado em objeto fetiche dos tempos do capitalismo tardio (Bauman 2017, 10). Na verdade, a ideia de progresso foi privatizada pelo sistema capitalista, transformando-se numa ideia de triunfo individual, de capacidade para singrar na vida e não como um caminho de libertação coletiva (Bauman 2017, 11). Deste modo, a ideia de um futuro coletivo a ser percorrido parece eclipsar-se, condenando todas e todos a viver ao ritmo das bolsas de valores, dos saldos do cartão de crédito e da inevitável deterioração das condições de vida das gerações vindouras. A ausência de futuro foi fabricada pelo aparelho neoliberal que, nas últimas décadas e particularmente desde a queda do Muro de Berlim, procurou sonegar as alternativas anticapitalistas e semear um estado de espírito derrotista (Godinho 2017, 20), asseverando que there is no alternative. Por isso, afigura-se urgente, tal como explicou Panitch, recuperar as ideias de progresso coletivo e de otimismo intelectual, pois estas permitem combater o poder absorvente da retrotopia e reaver a ideia de futuro. Nesta senda, esta dissertação procurou recolher e debater algumas “práticas possíveis” a partir das quais perspetivas de futuro estão a ser construídas (Godinho 2017, 20).

 

Será precisamente com base nesta reflexão sobre otimismo intelectual, capacidade transformadora e progresso que esta tese se procurará concluir, sabendo que escrever uma conclusão será sempre deixar novos caminhos abertos para percorrer, aprofundando as reflexões necessariamente incompletas que aqui foram traçadas.

 

A primeira pergunta apontada na introdução desta dissertação foi: de que forma as relações de poder estão espelhadas no espaço público de Lisboa? No primeiro capítulo, recorrendo a um vasto leque de autoras e autores, procurou-se construir um argumento central: a cidade de Lisboa - à semelhança de todas as outras - é um palimpsesto, um texto urbano com várias camadas que contam histórias temporalmente distintas e no qual convivem memórias fortes e memórias fracas (Traverso 2020, 85-86). À semelhança de um texto literário, a cidade apresenta-se como um corpo textual no qual podemos ler relações de poder e de subalternidade, encenadas perpetuamente no espaço público através de camadas de pedra - aparentemente imutáveis - e camadas de gesto - aparentemente efémeras -. O corpo urbano, vivo e dinâmico e espaço de constante mudança, através das suas representações simbólicas no espaço público, é igualmente lugar de exibição constante de ideias dominantes, de narrativas hegemónicas sobre identidade nacional, história e cultura. Se as ideias dominantes são as ideias da classe dominante (Marx e Engels 2007, 72), aquelas que detém a força material para subalternizar as dos outros, são essas as ideias que ocupam esmagadoramente o espaço público: museus, memoriais, estátuas, monumentos e placas toponímicas. Os homens brancos de classe alta que persistem olhando sobranceiramente do alto dos pedestais de pedra onde se sentam, por muito que tantas vezes passem despercebidos aos olhos do flâneur distraído, persistem sendo os guardiões simbólicos do establishment, fazendo ecoar todos os dias que o privilégio de classe, raça e género continua a dar forma às relações sociais contemporâneas.

 

Ao mesmo tempo, sabendo que Lisboa não está imune às dinâmicas de fetichização associadas ao crescimento da indústria do turismo (Alonso González 2017, 282), olhamos para esta apropriação capitalista do espaço da cidade que usa habilmente a narrativa glorificante da expansão colonial portuguesa para vender Lisboa, numa uma aliança entre Estado e Mercado (Mitchell 2003, 450), e depreendemos que as narrativas oficiais sobre a identidade e a história nacional se aliam ao capital para criar uma marca lisboeta, uma cidade-produto dos navegadores e “descobridores”. Deste modo, ao longo da tese mostrámos de que forma espaços como o complexo memorial de Belém - desde o Padrão dos Descobrimentos à Praça do Império -, a estátua de Padre António Vieira ou a Expo ‘98, atual Parque das Nações, são espaços profundamente marcados por essa encenação das narrativas hegemónicas sobre a identidade nacional portuguesa: ligada aos “descobrimentos”, à multiculturalidade ou a uma suposta ligação ao mar (Peralta 2017, 9). Nestes espaços, podemos ler relatos de narrativas hegemónicas que perpetuam a ideia de que o colonialismo português foi benigno e especial, que “descobrimos” e “civilizámos” povos de todos os cantos do mundo. De fora destas narrativas, remetidos ao silêncio, num projeto de “esquecimento organizado” (Mitchell 2003, 450) ficam os relatos da escravatura, da brutalidade da ocupação colonial, das missões de pacificação, do Estatuto do Indigenato e particularmente do racismo que continua a mutilar a sociedade portuguesa.

 

Por todas estas razões, no terceiro capítulo, debruçamo-nos sobre uma breve cronologia da iconoclastia antirracista, tendo como objetivo central demonstrar que esta não é um mero pormenor das manifestações antirracistas que abalaram o mundo desde o assassinato de George Floyd. Recorrendo a um ensaio absolutamente fundamental de Enzo Traverso (Traverso 24 Jun 2020), procurou-se salientar que deitar abaixo estátuas não é sinónimo de apagar a história - pelo contrário, como vemos pelas estátuas derrubadas de Jorge V, Napoleão e Estaline - mas faz-nos ver a história mais claramente, desvendando as suas ramificações que correm até aos nossos dias e as injustiças que se perpetuam no tempo. Homens como Edward Colston, Leopoldo II ou Robert E. Lee foram transformados em alvos das manifestações antirracistas pois, como representantes da escravatura, do colonialismo e do racismo dos séculos XIX e início do XX, continuam a ser símbolos das suas configurações modernas, expressas no preconceito racial, na violência policial e nas desigualdades sociais. Em Lisboa, a estátua de Padre António Vieira ou o Padrão dos Descobrimentos são representações paradigmáticas simbólicas destas continuidades racistas que ligam passado e presente.

 

A segunda questão traçada na introdução foi: quais foram os debates que agitaram a opinião pública sobre este tema e que chamaram a atenção para o mesmo? No quarto capítulo desta dissertação, debruçamo-nos longamente na elaboração de uma cronologia sistemática dos debates que puseram em causa os consensos sobre as narrativas imperiais portuguesas, referenciando igualmente as repercussões que os discursos oficiais veiculados por várias personalidades eleitas tiveram no desenrolar deste processo. A criação desta cronologia foi um dos aspetos centrais a que esta dissertação se propôs, reconhecendo que esta representaria uma contribuição para o aprofundamento do estudo de um período temporal e de debates políticos ainda não suficientemente abordados pela literatura. O intervalo de tempo escolhido - de 2017 a 2022 - assinala precisamente o ano em que o consenso alargado e aparentemente fixo sobre a história da expansão portuguesa quebrou. Nesse ano, foram vários os momentos a assinalar: as controversas declarações do Presidente da República sobre a abolição da escravatura proferidas numa visita oficial ao Senegal, a instalação da estátua de Padre António Vieira no Largo Trindade Coelho - sobre a qual viriam a correr rios de tinta - e, finalmente, a proposta de criação de um “Museu da Descoberta” em Lisboa - e as subsequentes movimentações críticas contra a mesma -, avançada pelo Presidente da Câmara e candidato Fernando Medina. Nos anos seguintes foram várias as polémicas que vieram contribuir para o estilhaçar do consenso previamente instalado. Ainda em 2017, a proposta de criação de um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas veio animar o debate que havia eclodido meses antes, mostrando que uma quantidade considerável de lisboetas apoiavam uma inscrição crítica da memória das pessoas escravizadas no coração da cidade, reivindicando a construção de um antimonumento. De tudo o que é relatado, destacamos ainda três temas fundamentais que marcaram o pós-2017: a estátua de Padre António Vieira, os brasões da Praça do Império e o Padrão dos Descobrimentos.

 

Padre António Vieira, missionário jesuíta e reconhecida figura das letras portuguesas, viu a sua representação de bronze ser colocada numa zona central de Lisboa e, desde logo, ser alvo de grande contestação. Aquando da colocação da estátua, foi convocada por associações antirracistas uma manifestação sob o mote “descoloniza” mas que, no entanto, foi cancelada devido a uma contramanifestação neonazi. Já em 2018, foram colocadas a seus pés flores brancas, provavelmente representativas do movimento abolicionista. No ano seguinte, a estátua é alvo da sua primeira pichagem que, em letras amarelas vivas, escreve: “fuck colonialism”. Finalmente, já em junho de 2020, na sequência dos grandes protestos antirracistas relacionados com o assassinato de George Floyd, o bronze do jesuíta amanheceu com pinturas vermelhas - manchas vermelhas na figura de Vieira e corações pintados nas representações das crianças indígenas - e com a palavra “descoloniza”. Ora, a segunda pichagem da estátua abriu um enorme debate na sociedade lisboeta - e portuguesa - sobre iconoclastia, legado colonial e representações históricas do colonialismo no espaço público.

 

Em 2014, a Câmara Municipal de Lisboa anunciou que os brasões da Praça do Império, desenhos em arbustos representativos das diversas colónias portuguesas, seriam retirados como parte do projeto de recuperação desse espaço. A partir desse ano até ao final de 2021, a polémica reacender-se-ia diversas vezes, focando-se, uma vez mais, nas acusações de apagamento da histórica e forçando uma reflexão sobre que tipo de representações do passado colonial fazem sentido em Democracia.

 

Finalmente, o Padrão dos Descobrimentos, símbolo máximo da Lisboa persistentemente imperial, foi palco e alvo de diversos debates que se centraram nas representações da história colonial no espaço público. O monumento foi alvo de críticas de diversas figuras da esquerda política que sublinharam o seu cariz anacrónico e a sua ligação direta com a narrativa gloriosa da empresa colonial. Ao mesmo tempo, a extrema-direita foi-se procurando consolidar como defensora do Padrão, tanto da sua materialidade como do seu simbolismo, atacando a programação alternativa e crítica das narrativas hegemónicas sobre o colonialismo que, muitas vezes, este recebia em formato de exposições e filmes. O próprio partido Chega utilizou o Padrão dos Descobrimentos como palco para o lançamento da candidatura autárquica a Lisboa, apresentando-se a si próprio como defensor do suposto legado do colonialismo português, mantendo-se fiel às narrativas lusotropicais. Se é verdade que os monumentos podem ser ressignificados através do gesto - da ocupação, da manifestação, da performance - e lhes podem ser atribuídas camadas críticas, é igualmente verdadeiro que podem ser palco de encenação de narrativas reacionárias que visam defender a manutenção do status quo. Pensar o espaço público como lugar de encenação de diferentes narrativas e memórias, local sempre dinâmico e cujo significado é constantemente negociado, ajuda-nos a compreender os vários processos de significação dos mesmos. Por fim, é importante assinalar que, em agosto de 2021, o Padrão dos Descobrimentos foi também alvo de uma pichagem que, em letras escarlate e azuis, fez ler: “sailing for monney [sic], humanity is drowning in a scarllet [sic] sea”. Apesar de ter gerado relativamente pouco debate, este momento não pode deixar de ser assinalado pois representa a inscrição de uma mensagem de cariz anticolonial no coração simbólico do que resta da Lisboa imperial, no elemento central do complexo memorial de Belém.

 

Finalmente, a terceira pergunta lançada pela introdução havia sido: quais são os projetos de memorialização alternativa que têm sido ensaiados na cidade de Lisboa por ativistas e investigadores nos últimos anos de modo a contrariar a realidade desta paisagem memorial? Ora, voltemos brevemente a Antonio Gramsci. O filósofo considerava que a cultura, longe de ser o conhecimento enciclopédico reservado aos salões da alta sociedade, representava o corpo de ferramentas através das quais as pessoas percecionam o seu lugar de classe no mundo e as relações sociais que mantêm com os outros (Crehan 2002, 74). A cultura permitiria aos subalternos conhecerem-se a si próprios - ou seja, à sua história e ao seu potencial transformador como classe - e a tornarem-se donos de si mesmos e dos seus destinos. Deste modo, a cultura dos subalternos, na qual se inclui a memória e a disputa contra as narrativas memoriais dominantes que impelem para as margens os que não pertencem às elites (Ciotta Neves 2012, 29), contribui para a criação de coletivos de pessoas capazes de encetar transformações sociais profundas. Talvez seja exatamente por isso que a iconoclastia está historicamente tão próxima dos movimentos de transformação social, sendo a representação mais paradigmática de que o combate por um futuro diferente passa pelo diálogo com o passado e pela valorização da cultura e memória dos subalternizados pela classe, racialização, género e banimento da cidadania.

 

Regressemos a Lisboa: no contexto desta tese e à luz das reflexões gramscianas que se foram traçando, procurou-se contribuir para o desencobrir de projetos de memorialização alternativa e contrahegemónica. Considerou-se que, se olhamos para a memória hegemónica sobre o colonialismo português, as suas repercursões no espaço público e os debates em torno da mesma, é essencial que estudemos igualmente as formas de organização alternativas, os projetos que têm procurado recuperar uma memória subalterna e subalternizada e que tem potencial transformador de combate ao racismo e à supremacia branca. Assim, recorrendo a trabalho de campo e a entrevistas, esta dissertação debruçou-se sobre quatro visitas guiadas alternativas à Lisboa africana e da escravatura. No quinto capítulo, discutimos as visitas guiadas da Associação Batoto Yetu, da African Lisbon Tour, do Museu de Lisboa e da Lisbon Walkers. Diferentes nos seus percursos e moldes, estas visitas têm em comum o projeto de desonubilar a memória dos quotidianos das pessoas africanas e escravizadas em Lisboa e dar a conhecer as suas formas artísticas, culturais e de resistência. Neste mesmo capítulo, numa secção seguinte, recorrendo ao exemplo das Stolpersteine, na Alemanha, do Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, na Argentina, e mesmo do Monumento ao 25 de Abril de João Cutileiro, em Portugal, procurou-se problematizar a ideia de “antimonumento”. Estes espaços, à semelhança daquele que se pretende construir em Lisboa para homenagear as pessoas escravizadas, apresentam-se como desafios à própria conceção clássica de um monumento, impondo-se na paisagem memorial como uma memória incómoda, contraditória e um verdadeiro representante material do que Macdonald chamou “herança difícil” (Macdonald 2009, 1). Além do projeto do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, nos últimos meses, a Associação Batoto Yetu lançou uma campanha de fundos no sentido de colocar várias placas e duas estátuas relacionadas com a presença africana secular na cidade de Lisboa. Estas, de forma inédita, representarão uma inscrição não efémera no espaço de uma memória longamente silenciada e servirão para sedimentar uma nova camada de significado e de memória no espaço público lisboeta. Finalmente, numa última secção deste capítulo interrogou-se o caráter político dos mapas e as possibilidade de contrariar a espacialização do poder através de projetos de contracartografia coletiva crítica. Alguns projetos neste sentido têm avançado em Lisboa, particularmente o “Remapping Memories Lisboa-Hamburg”, lançado pelo Goethe-Institut Portugal. Se os mapas são ferramentas privilegiadas do imperialismo e da dominação, são também instrumentos através dos quais é possível contrariar narrativas dominantes e propôr formas alternativas de ocupação e utilização do espaço, face ao avanço do capitalismo e à subsequente destruição do lugar. Pedindo de empréstimo a expressão de Doreen Massey, o espacial é político e, por isso, a imaginação de alternativa política é simbiótica à imaginação de alternativas espaciais (Massey 2005, 9). O espaço do poder pode ser igualmente o espaço da resistência. Nesse sentido, todos estes projetos de inscrição de uma memória alternativa colocam em evidência o caráter sempre político do espaço e da sua ocupação e denotam que a própria resistência política e perspetivação de alternativas assentam no espaço e na sua reconfiguração.

 

Chegamos ao fim desta dissertação com algumas respostas - que esta conclusão procurou sistematizar - mas, igualmente, com uma vasta panóplia de perguntas, cada uma representando um caminho que pode ser percorrido a partir daqui. Este trabalho, necessariamente incompleto como qualquer outro, pode servir de ponto de partida para aprofundar investigações futuras junto das associações, instituições e ativistas que têm construído os projetos de memorialização alternativos que foram aqui discutidos. Estudar e dialogar com as mesmas permitirá uma observação e reflexão mais detalhada sobre movimentos sociais, formas de resistência quotidiana, memórias fracas e o uso da memória como ferramenta de transformação social. Ao mesmo tempo, esta dissertação, tendo procurado tecer algumas reflexões sobre o processo de mercantilização que transforma Lisboa numa mercadoria vendável, reforçando e recorrendo à artificialidade da aura da cidade das “descobertas”, reconhece que este é um campo que, face à intensificação das dinâmicas fetichistas do capitalismo contemporâneo, necessita de um contínuo aprofundamento e de um mergulho mais profundo nas suas dinâmicas. A relação da indústria do turismo com o reforço das narrativas hegemónicas sobre a expansão colonial portuguesa, numa lógica de união entre o avanço desenfreado do capitalismo tardio e a manutenção do status quo do bom colonizador, depreende uma dinâmica de “espetacularização da memória” (Mitchell 2003, 443) que pode servir de ponto de partida para uma investigação que ligue questões de memória, património e capitalismo. Ao mesmo tempo, a questão do antipatrimónio, já discutida através da lente de Pablo Alonso, é uma porta de entrada para futuras investigações que, partindo da cidade de Lisboa, desafiem a própria conceção de património, como mercadoria que se encaixa numa dinâmica incessante de destruição na procura de lucro e como dispositivo de governação, e contribuam para o tão necessário corpo teórico das investigações patrimoniais críticas que, junto de ativistas, associações, moradores e trabalhadores, possam ajudar a criar novas configurações memoriais contrahegemónicas. Finalmente, a própria iconoclastia antirracista - que nesta dissertação ocupa apenas um capítulo - é um tema central dos nossos dias que, tendo sido bastante discutido desde 2020, continua a merecer um maior aprofundamento teórico e elaboração de investigações em conjunto com associações e movimentos antirracistas sobre como lidar com as representações de figuras racistas no espaço público.

 

Esta dissertação procurou afirmar-se como um trabalho de Antropologia ativista e crítica, com uma consciência nítida do seu posicionamento político e dos projetos de transformação social para os quais pretende contribuir. Procurando terminar numa linha semelhante à que iniciou esta conclusão, esta dissertação propõe-se a ser profundamente otimista. Analisando as condições objetivas e a conjuntura política em que as lutas e os debates se desenrolaram e igualmente as formas como a resistência e a transformação social se organizam, este trabalho procura encarar o progresso e a transformação social não como um dado adquirido mas como uma responsabilidade comum e coletiva, pela qual somos responsáveis, num processo do qual todas e todos fazemos parte. Isto não significa crer numa teleologia totalizante, imune à ação individual ou coletiva mas, pelo contrário, reconhecer a força material das ideias, a capacidade de agencialidade mesmo face ao peso da dominação e o poder transformador da ação dos subalternizados.

 

O otimismo - do espírito e do intelecto - insta-nos a contemplar simultaneamente um panorama no qual o avanço do capitalismo destrói laços sociais, direitos inalienáveis e se espacializa de forma brutal e a ter em conta que, apesar de improvável, a energia potencial da transformação social reside na resistência dos subalternizados, na preservação dos seus relatos sobre o mundo, nas suas memórias e formas de viver o quotidiano. Ao mesmo tempo, esta perspetiva leva-nos a perscrutar as paisagens do poder em busca de fissuras que, por muito estreitas que possam ainda ser, representam o potencial transformador que nunca cessa de existir. Como cientistas sociais implicados e ativisitas, cabe-nos reter a complexidade das dinâmicas do capitalismo e do neoliberalismo, mas simultaneamente, a força e diversidade das “respostas subalternas” (Godinho 2017, 25). No fundo, tudo isto implica reconhecer, tal como Marx preconiza na obra de Brumário de Louis Bonaparte, que: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx 2000, 6).

 

É com esta perspetiva otimista que esta dissertação procurou olhar Lisboa: face ao poder esmagador - apoiado na aliança entre Capital e Estado - das narrativas brancas, excludentes, imperialistas e lusotropicais, há quem construa, todos os dias, as ferramentas capazes de quebrar o consenso e, um dia, o próprio sistema. Todas as hegemonias são incompletas e a das narrativas lusotropicais também o é. Que as palavras desta dissertação se possam concretizar em ação e contribuir para o duro processo de abrir fendas nos sistemas de dominação. Terminando como se começou, com Leonard Cohen, há uma brecha em tudo, é assim que a luz entra. O caminho faz-se caminhando.

 

Excerto de Rosas, Leonor. 2023. De quem se esqueceu Lisboa - A luta pela inscrição da memória anticolonial e antirracista no espaço público, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus.

 

 

 

 

 

 

 

Última edição em: 21/12/2024 03:22:58