Placa memorial de Alcindo Monteiro

© still do filme 'Alcindo' de Miguel Dores

Placa memorial de Alcindo Monteiro

Um olhar sobre três décadas de antirracismo em Portugal: da noite do “Dia da Raça” às mobilizações de 2020

José Augusto Pereira & Pedro Varela
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Na madrugada de 10 para 11 de junho de 1995, um grupo de skinheads fascistas desceu as ruas do Bairro Alto, Chiado e Cais do Sodré, espalhando o terror na cidade de Lisboa. Nessa noite atacaram dezenas de pessoas, na sua maioria negras, movidos pelo ódio racial. Alcindo Monteiro, um caboverdiano de 27 anos, seria brutalmente espancado morrendo horas depois no hospital.

Quando isto aconteceu, existia já um novo movimento antirracista em Portugal, que surgira, no início da década, em torno da denúncia e do combate à crescente violência neonazi contra pessoas racializadas e militantes de esquerda. Em 1990 era criado o SOS Racismo, e nos anos seguintes surgiam a Frente Anti-Racista (FAR) e o Movimento Anti-Racista (MAR). Nessa luta contra o racismo, somavam-se ainda diversas organizações de imigrantes africanos, coletividades de bairro de maioria negra e juvenis, com destaque para o Moinho da Juventude da Cova da Moura e os Unidos de Cabo-Verde das Fontainhas, na Amadora; a Olho Vivo de Queluz; a Associação Caboverdeana ou a Associação Guineense de Solidariedade Social, esta última intimamente ligada à figura de Fernando Ka, falecido em 2015.

O início da década de 1990 seria marcado também pela eclosão de um levante antirracista nos Estados Unidos na sequência das agressões a Rodney King por parte da polícia de Los Angeles e, em vários países europeus, a luta antirracista reorganizava-se contra a ascensão de grupos de extrema-direita.

Entretanto, o emergente movimento Hip-hop ia revelando um novo conjunto de jovens ativistas antirracistas, enquanto conquistava posições nas editoras e no espaço mediático. General D, rapper pioneiro deste movimento, era uma das vozes mais importantes da geração. No seu primeiro single, intitulado Portukkkal é um erro, proclamava, premonitório: "Males se juntaram e criaram esta nação / Fuck 10 de junho / E a Cavaco e a Salazar eu digo: Não!". Estávamos em 1994, um ano antes do assassinato de Alcindo Monteiro. O 10 de junho, durante o Estado Novo designado como Dia da Raça, era claramente visado por General D, ao mesmo tempo que a extrema-direita, no pós 25 de abril, vinha evocando essa data procurando reatribuir-lhe o significado vigente na ditadura. Exemplo disso foi a concentração de cunho fascista realizada nessa data em 1978, no Largo Camões, que teve como resposta uma contramanifestação antifascista que seria varrida a tiro pela polícia, causando um morto e dois feridos.

Tentaremos ao longo das próximas linhas percorrer o trilho deixado pela luta antirracista em Portugal nas últimas três décadas, pontuando momentos de mobilização, de reorganização e de transformação do movimento.

As manifestações contra a morte de Alcindo Monteiro

No dia 16 de junho de 1995, dias depois da morte de Alcindo Monteiro, Portugal assistiu às maiores manifestações antirracistas realizadas até então. Milhares de pessoas reuniram-se nas ruas de Lisboa e do Porto respondendo ao apelo de associações antirracistas, de imigrantes, ciganas, de jovens, de estudantes, de solidariedade social, católicas, partidos políticos de esquerda e sindicatos. Trinta organizações convocaram o ato e cem assinaram o manifesto de adesão.

Em Lisboa, as pessoas concentraram-se no Largo São Pedro de Alcântara e dali saiu uma multidão de todas as cores que percorreu as ruas do Bairro Alto, descendo depois até ao Ministério da Administração Interna no Terreiro do Paço. No Porto, os manifestantes encontraram-se na Praça da Liberdade. O Jornal de Notícias escreveria que a manifestação de Lisboa "foi uma das maiores jamais realizadas na capital. [...] Quantos estiveram presentes?... Não Sabemos. Ninguém saberá. Foram apenas muitos! Imensos". 

Contudo, a reportagem deste jornal logo acrescentaria que, afinal, o país não era racista: "Todos unidos para pedir justiça contra os assassinos do jovem Alcindo Monteiro e, ao mesmo tempo, para deixar claro que os "skinheads" são apenas uma minoria, muito menor. Porque Portugal não é racista. Nem pode ser, lembraram os presentes [1]

© arquivos do SOS Racismo e da Solidariedade Imigrante

Depois daquela noite de "terror branco", Portugal não seria mais o mesmo. A consciência antirracista pressionava as instituições para uma mudança em relação à impunidade da extrema-direita, que colocava o país no mapa europeu de ascensão destes grupos. A morte de Alcindo Monteiro ficaria marcada na memória coletiva do país, das pessoas negras e brancas. No entanto, apesar da violência racista de grupos neonazis ter sido encarada nos anos seguintes como um problema, o racismo institucional que o possibilitou continuou a ser ignorado e aquela madrugada violenta seria tratada, afinal, mais como um episódio isolado do que a demonstração de um problema estrutural. Esta circunstância pode ajudar a explicar o facto de a violenta morte de Alcindo Monteiro apenas ter sido lembrada pelos poderes públicos muitos anos depois. Em 2020, a Câmara Municipal de Lisboa colocou uma pequena e quase envergonhada placa em sua memóriana rua Garret, no Chiado, lugar onde o crime ocorreu. Durante a inauguração, Fernando Medina afirmou mais uma vez que a capital do país era afinal um lugar de tolerância, numa demonstração da permanência de marcas do discurso lusotropicalista em diversos escalões do Estado, mais interessados em negar o racismo do que em combatê-lo.

As mobilizações imigrantes, associativismo cigano e o surgimento de um ativismo negro jovem na periferia

A partir de 1998, os imigrantes começaram a sair à rua em várias ações de protesto, juntando-se às mobilizações que surgiam noutros países da União Europeia. E, em 1999, o associativismo antirracista, imigrante e cigano une-se em redor da Rede Anti-Racista, acompanhando uma reorganização do movimento a nível europeu, nomeadamente através da European Network Against Racism. Neste ambiente político nasce, em 2001, a Solidariedade Imigrante através da militância migrante que existia na Olho Vivo. Inicialmente a Festa da Diversidade cimentará a unidade em redor da Rede Anti-Racista, mas poucos anos depois a plataforma desmembra-se. 

O final dos anos 1990s também foram fundamentais para a reorganização do associativismo cigano, nomeadamente em resposta às brutais perseguições de milícias brancas que aconteceram em Oleiros (Vila Verde) e Francelos (Vila Nova de Gaia). Neste período surgem as Oficinas Romani, em Lisboa; a Associação União Romani Portuguesa, no Porto, a Associação Cigana de Coimbra e a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, em Évora.

Em dezembro de 2001, jovens da Cova da Moura revoltaram-se contra o assassinato de Ângelo Semedo “Angoi”, por parte da polícia, sendo reprimidos brutalmente pelas autoridades. Os acontecimentos são destacados nas primeiras páginas dos jornais e abrem noticiários nas televisões, sendo impossível de disfarçar o viés racista a partir do qual o bairro era retratado. Em junho do ano seguinte, jovens da Bela Vista, em Setúbal, revoltam-se contra a morte de António Pereira “Toni”, morto também por tiros da polícia. Nos dias posteriores organizaram uma importante manifestação que percorre as ruas da cidade de Setúbal.

© arquivos do SOS Racismo e da Solidariedade Imigrante

Neste ambiente de injustiça racista e violência policial, nos anos seguintes formar-se-ia um movimento de jovens negros periféricos, muitas vezes ligados ao rap e ao antigo associativismo de bairro, e que exigia voz num país que lhe negava direitos. Por exemplo, em 2002 surge a Associação Khapaz no bairro da Arrentela, Seixal, e em 2005 surgia  a Plataforma Gueto, e depois o jornal Gueto: Olhos Ouvidos e Vozes, onde se destacavam vários ativistas da Cova da Moura.

O novo milénio trazia agora para as ruas novos atores, imigrantes e jovens negros da periferia, que iriam moldar a composição das organizações antirracistas no período seguinte. Estes foram também anos de enormes revoltas em França que levaram jovens negros e de origem magrebina às ruas contra a brutalidade policial, o desemprego, a discriminação e a segregação.

O movimento negro atua contra a violência policial racista 

Em janeiro de 2009, Elson Sanches, um jovem de 14 anos conhecido como “Kuku”, é morto pela polícia no bairro de Santa Filomena, na Amadora, com um tiro na cabeça disparado à queima-roupa. O assassinato revolta a população de diversos bairros. No dia 17 de janeiro, a Plataforma Gueto convoca uma importante manifestação contra a brutalidade policial, levando centenas de pessoas para a frente da esquadra da PSP do Casal da Boba, também na Amadora. Na convocação à participação no protesto escreviam: "Apelamos a tod@s @s irm@s, tropas, guetos e organizações solidárias que se juntem nesta jornada duma luta que é de tod@s e que esteve calada muito tempo". Este ato constituiu um marco para o movimento antirracista. Agora, o movimento negro autónomo mostrava uma importante capacidade mobilizadora.

Em 2015, depois dos atos de brutalidade policial na esquadra da PSP de Alfragide e na Cova da Moura contra moradores e dirigentes associativos negros, como Flávio Almada e Celso Lopes, o movimento antirracista, predominantemente negro, junta as mãos e mobiliza-se. Sucedem-se encontros na Cova da Moura reunindo ativistas pertencentes a várias organizações, onde são delineadas ações coletivas. Assim, no dia 12 de fevereiro vão concentrar-se em frente à Assembleia da República centenas de pessoas contra a brutalidade policial, afirmando a vitalidade de um ativismo forjado na periferia e que ocupava agora o centro da capital.  

© arquivos do SOS Racismo e da Solidariedade Imigrante

Algumas semanas depois, no Largo de S. Domingos, ainda sob o signo destes episódios de violência, no Dia Internacional contra a Discriminação Racial a 21 de março, um conjunto de ativistas e de organizações antirracistas impulsionou uma concentração com centenas de pessoas, que combinou intervenções políticas e artísticas. Por essa altura, ocorriam também importantes mobilizações nos bairros autoconstruídos contra a demolição injusta das suas casas, em particular na Amadora. 

Do julgamento dos 17 agentes da PSP da esquadra de Alfragide, realizado no Tribunal de Sintra, resultou em 2019 a condenação de oito arguidos: um com pena efetiva, sete com pena suspensa, por crimes de sequestro e agressões. Os restantes arguidos foram absolvidos. Alguma imprensa classificou a sentença como histórica, porém, mais uma vez todos os polícias foram absolvidos dos crimes de tortura e ódio racial.

Este período aparece conectado com o movimento Black Lives Matter, com epicentro nos EUA, onde várias dezenas de milhar de pessoas juntavam-se nas ruas para protestar contra as execuções de afro-americanos pelas autoridades policiais. Um outro traço marcante desta época foi a denominada crise dos refugiados, drama humanitário de dimensões gigantescas que eclodia em vários pontos do globo. As organizações antirracistas em Portugal refletiam, à sua maneira, os estímulos trazidos por este contexto externo, que incluía também o acompanhamento da situação económica, social e política no continente africano, assim como a dinâmica do movimento negro brasileiro.

Ativistas exigem medidas do Estado

Neste período nascem diversos novos coletivos negros que reconfiguraram o movimento antirracista existente. São disso exemplo o surgimento da Djass, Consciência Negra, Rádio Afrolis, Nêga Filmes, Femafro, Roda das Pretas, INMUNE, Tributo aos Ancestrais ou a dinâmica vivida pelo Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa (GTOLX). Estes coletivos mobilizavam-se através da cultura, arte, ações de solidariedade, lutas de bairros e na luta de cunho estritamente político. As mulheres vão ter um papel central nesta nova dinâmica antirracista, dirigindo diversos coletivos e construindo-se como figuras públicas. A eleição simultânea de três mulheres negras para o Parlamento em 2019 pode ser entendida como um resultado desta dinâmica. Por outro lado, uma nova geração de ativistas ciganos/roma começava a emergir nesta fase, denunciando a ciganofobia estrutural do país e mobilizando-se no associativismo autónomo, antirracista e nas manifestações contra o racismo.

A força deste movimento antirracista diverso e reconfigurado ficou patente aquando da publicação, em dezembro de 2016, de uma carta aberta endereçada à ONU. Mais de 20 organizações assinaram o documento no qual o Estado português era visado por não reconhecer o racismo e por não estabelecer um verdadeiro diálogo com o movimento. A carta elencava um conjunto de elementos que ilustravam as desigualdades raciais em Portugal nos domínios da educação, habitação, trabalho, saúde, violência policial, do acesso à nacionalidade e dos problemas específicos da mulher negra afrodescendente, exigindo uma mudança das políticas institucionais.

Uma das questões enunciadas na missiva relaciona-se com a exigência da recolha, por parte do Estado, de dados estatísticos com base em critérios étnico-raciais no âmbito dos Censos, encarada como essencial para o desenhar de políticas que visassem a superação do racismo. Sucessivos governos têm ignorado esta demanda, apesar das tomadas de posição públicas de figuras ligadas ao movimento negro que se juntam às recomendações da ONU feitas nesse sentido. Em 2019, um grupo de trabalho promovido pelo governo e composto por ativistas e especialistas votou um relatório favorável à recolha desses dados nos Censos, porém, o Instituto Nacional de Estatística recusou pôr em prática esta recomendação e o governo, que tutela este organismo, não contrariou a decisão. 

O acumular destas forças possibilitou igualmente, em 2017, a convocação de uma Campanha por Outra Lei da Nacionalidade, iniciativa que unia diversos coletivos e muitos ativistas em torno da mudança de uma lei que impedia o acesso à cidadania portuguesa de pessoas nascidas no país - a maioria afrodescendente – mas filhas de pai e mãe estrangeiros.

Desta forma, negava-se a milhares de pessoas o acesso a uma cidadania plena. Esta campanha, construída à volta de um conjunto de iniciativas realizadas um pouco por todo o país e da recolha de assinaturas entregues à Assembleia da República, procurou congregar o movimento negro, antirracista e imigrante numa campanha que duraria mais de um ano, exigindo que quem nascesse em Portugal pudesse ser português. A lei sofreu alterações no sentido de uma melhoria, mas não nos termos exigidos pelos assinantes da petição. Um novo tipo de reivindicações surgido nesta fase prende-se com a luta pelo direito à memória. É disso exemplo o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas em Lisboa, cuja construção resultará da intervenção no orçamento participativo da Câmara de Lisboa por parte da Djass, num processo que envolveu vários setores do movimento negro.

Uma nova escalada nas mobilizações 

Em janeiro de 2019 a polícia é filmada no bairro da Jamaica, Seixal, a atacar brutalmente a família Coxi. O vídeo das agressões policiais contra mulheres e homens espalha-se pelas redes sociais como um rastilho. No dia seguinte, uma manifestação espontânea de jovens, convocada através das redes sociais, sobe a Avenida da Liberdade, mas a sua marcha seria interrompida por balas de borracha da polícia. Lembre-se que, durante todos os protestos contra a austeridade em Portugal entre 2011-2013, por vezes marcados pela ocorrência de confrontos, a polícia nunca recorreu ao uso de balas de borracha. Ficava o aviso: a Polícia e o Estado não toleravam a contestação de jovens negros no centro de Lisboa. Nesse mesmo ano, com o acentuar do discurso de ódio racial, Mamadou Ba, um dos principais ativistas antirracistas e a deputada Joacine Katar Moreira, tornaram-se alvos de ataques constantes na imprensa e nas redes sociais.

© arquivos do SOS Racismo e da Solidariedade Imigrante

O ano seguinte, 2020, seria o ano de grandes mobilizações antirracistas de rua. A 31 de dezembro de 2019 morre um jovem estudante cabo-verdiano, Giovani Rodrigues que, dez dias antes, tinha sido perseguido e espancado por um grupo de homens em Bragança. Este caso levou a uma sucessão de protestos pelo país, de norte a sul, em Bragança, Lisboa, Porto, Coimbra e ainda fora de Portugal na Cidade da Praia, Paris e Londres, onde a comunidade cabo-verdiana se mobilizou fortemente. Por exemplo, em Lisboa, de uma concentração silenciosa surge uma enorme manifestação de milhares de pessoas que percorre as ruas do centro da cidade, subindo do Terreiro do Paço até ao Marques de Pombal, e depois descendo novamente a Avenida da Liberdade. Esta seria, até àquele momento, a maior manifestação desde a morte de Alcindo Monteiro.

Semanas depois, em fevereiro, novas manifestações acontecem contra as agressões sofridas por Cláudia Simões, uma mulher negra que fora impedida de entrar num autocarro com a sua filha na Amadora por se ter esquecido do passe social, tendo sido posteriormente detida e espancada pela polícia. A brutalidade usada por um agente da PSP sobre Claúdia Simões seria filmada pelos transeuntes em choque e o vídeo, mais uma vez, circularia rapidamente pelas redes sociais, levando à indignação. 

Nas semanas seguintes, o país entraria em confinamento devido à pandemia do Covid-19. Os bairros periféricos de maioria negra e cigana são alvo de vigilância redobrada a pretexto da defesa da saúde pública e a sua população será, muitas vezes, reprimida pela polícia. Por outro lado, os sintomas de emergência social agravavam-se o que levou ativistas e organizações do movimento negro a conceber a Campanha de Solidariedade Antirracista, com o propósito de responder às necessidades das comunidades racializadas no que diz respeito a bens de primeira necessidade. Alguns grupos de refugiados e migrantes são tratados com violência extrema, levados para quartéis militares ou pavilhões onde são submetidos a um confinamento sob controlo policial. Em março de 2020, o cidadão ucraniano Ihor Humenyuk morreria em condições de violência brutal às mãos de inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). E, nos últimos anos, acumulam-se casos de tortura e humilhação e migrantes no Alentejo por parte da Guarda Nacional Republicana (GNR). 

É no decurso dos primeiros meses de pandemia que se dá o assassinato de George Floyd e nos Estados Unidos da América levanta-se uma vaga antirracista mobilizada pelo movimento negro. Os ventos destes protestos espalham-se pelo mundo e chegam a Portugal. No dia 6 de junho de 2020, o país sai à rua respondendo ao apelo do movimento negro que trazia pautas de luta antirracista locais e internacionais. A manifestação de Lisboa seria tão grande ou maior do que aquelas que aconteceram depois da morte de Alcindo Monteiro e de Giovani Rodrigues.

Um mês depois, em julho, o ator Bruno Candé seria assassinado, em plena luz do dia, na artéria mais movimentada de Moscavide, com quatro tiros disparados à queima-roupa por um antigo combatente da guerra colonial que gritava insultos racistas. A morte não comoveu o país. A PSP rapidamente negou a existência de motivações racistas e dirigentes políticos nacionais e locais juntam-se a este coro negacionista. Mas o movimento negro e antirracista, a sua família e amigos juntaram-se contra o que era mais um evidente caso de brutalidade racista, em diversas concentrações pelo país. Um ano depois, o homem que assassinou o ator seria condenado a 22 anos de prisão, uma pena agravada por ódio racial. O tribunal desdizia então aquilo que fora negado pela PSP e por muita gente com responsabilidades políticas.

No decurso destas três últimas décadas a luta antirracista em Portugal percorreu um longo caminho. Muitas organizações e ativistas emergiram neste percurso, sendo um movimento cada vez mais liderado por pessoas negras, ciganas/roma e onde as mulheres têm um papel central. A sua ação logrou desfazer o tabu em torno da palavra racismo, denunciando a sua permanência nas estruturas do Estado e no conjunto da sociedade portuguesa. Os crimes de ódio racial e a violência policial racista motivaram as mais importantes manifestações deste período. O movimento antirracista ousou também pôr em causa mitos da história de Portugal, chamando à atenção para o legado violento do colonialismo e da escravatura. É, na verdade, um movimento que durante três décadas foi-se transformando para construir caminhos para um mundo melhor, um mundo sem racismo.


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Notas

[1] Paulo Lourenço e Ivete Carneiro, "Lisboa e Porto Saíram à Rua para dizer não ao racismo", Jornal de Notícias, 17/06/95, pp. 6 e 7.

Última edição em: 14/11/2024 04:30:12