Na margem direita do estuário do rio Tejo, em Belém, fica o Padrão dos Descobrimentos, cartão-postal para os turistas que visitam a cidade de Lisboa e um dos símbolos mais emblemáticos da propaganda do mítico “Império Português”. O monumento celebra o empreendedorismo marítimo português e o seu impulsionador Infante D. Henrique, relegando ao esquecimento as suas consequências trágicas.
Padrão dos descobrimentos 2021. © Rui Sérgio Afonso
O monumento
O Padrão dos Descobrimentos, juntamente com a Praça do Império, o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, forma um “complexo de memória” (Peralta, 2013), no qual se congrega o imaginário das glórias do Império Português – pensamento dominante do ideal universalista das navegações, de um mundo de maravilhas e de ganhos comuns, idealizado pelo Estado Novo.
Recordemos que o moto principal da expansão marítima portuguesa consistiu em ultrapassar a crise que se vivia no século XIV e fazer face à escassez de mão-de-obra, cereais e metais preciosos. A empreitada marítima projetada por Portugal assentou em interesses económicos; isto é, a sua motivação foi, antes de mais, o negócio, e não oaltruísmo evangelizador.
Em forma de caravela – embarcação emblemática dos “descobrimentos” –, este monumento implantado à beira Tejo, tem na sua proa, e em grande destaque, a estátua do Infante D. Henrique. Dos lados leste e oeste da caravela, figuram trinta e dois ícones da epopeia portuguesa, entre eles, monarcas, colonizadores, navegadores, evangelizadores e artistas.
A primeira construção do Padrão dos Descobrimentos foi de carácter temporário e inseriu-se na Exposição do Mundo Português, realizada em 1940, com o propósito de consolidar o regime político ditatorial de Salazar através de uma dupla celebração: a fundação do Estado Português e a Restauração da Independência (1640). É neste contexto que o Padrão dos Descobrimentos se torna o símbolo de uma iniciativa político-identitária.
Em 1941, uma forte tempestade danificou grande parte da exposição e o monumento acabou por ser removido em 1943. Passados menos de 20 anos, o Estado Novo encontrava-se sob forte pressão internacional, no sentido de reconhecer o direito de autodeterminação e a independência das colónias. Em 1958, em torno da candidatura oposicionista de Humberto Delgado, ocorre no país uma forte mobilização popular contra o regime. Em contraponto, é engendrada, pelo Estado Novo, uma estratégia nacional de propaganda para reforçar o seu estatuto e poder. É com este propósito que, em 1960, e por ocasião das comemorações dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, se reedifica o Padrão dos Descobrimentos. Nesta celebração, é novamente invocada a narrativa histórica da expansão marítima, mas agora com um ajustamento ideológico: o "Império Colonial" dava lugar ao "Projeto Ultramarino Português". Em paralelo, o Ato Colonial de 1951 foi revisto e incluído na Constituição, o que criou a visão teórica da “extinção” do “Império Colonial Português”, baseado na distinção metrópole-colónias. As então colónias passam, assim, a ser denominadas de Províncias Ultramarinas e é resgatado o mito da ação civilizadora e evangelizadora de Portugal. Através da propaganda política, Portugal pretendia justificar a existência das suas colónias.
Padrão dos descobrimentos 2021. © Rui Sérgio Afonso
A dualidade do monumento
No conjunto escultórico da caravela com a sua estatuária, estão simbolizadas as glórias do Império Português e ausentes as suas tragédias. Os seus atores possuem uma dupla significação: foram heróis e algozes; porém a simbologia oficial do Padrão dos Descobrimentos não representa “o Império com o bem e o mal”. É nesta dualidade que o Padrão dos Descobrimentos se torna também um símbolo de negação e esquecimento da colonização, do tráfico marítimo negreiro, das civilizações destruídas e do racismo que hoje ainda prevalece na sociedade portuguesa. Que se clarifique que descobrimentos e colonialismo são diferentes, mas indissociáveis.
A memória ancestral dos negros portugueses e afrodescendentes, resultante da expansão marítima portuguesa – e implícita no Padrão dos Descobrimentos –, é negada e recusada, como sendo parte da História de Portugal. Memoriais como este, vêm assim reforçar o sentimento de não-pertença destes cidadãos à nação portuguesa.
Numa tentativa de ressignificação do monumento e da sua memória, a EGEAC (Empresa Municipal de Cultura de Lisboa) tem vindo a realizar iniciativas e debates que se propõem refletir sobre as “representações do antigo Império Português”, “racismo e cidadania” e visões de África.
Contem-se as glórias e as tragédias.
Padrão dos descobrimentos 2021. © Rui Sérgio Afonso
Grada Kilomba (2019) refere o processo de responsabilização como sendo indispensável para a criação de “novas configurações de poder e de conhecimento”, condição essencial para que uma sociedade inclua todas as vozes e todos os cidadãos na redefinição e construção da história, memória e seu futuro. Nesta linha de pensamento, é imperativo que a consciência coletiva portuguesa abandone o atual estado de negação e repense a existência, no espaço público, do Padrão dos Descobrimentos enquanto representação imaginária do Estado Novo descontextualizada da totalidade da sua história. Uma sociedade que se vê e quer como democrática não pode“sofrer” de memória seletiva e não recordar as tragédias, os povos e civilizações invisibilizados.
O debate e a crise de identidade
Recentemente, ressurgiu em Portugal – na imprensa e redes sociais – um debate aceso sobre a relevância e adequação do monumento do Padrão dos Descobrimentos no espaço público. Toda uma controvérsia foi desencadeada pela dupla significação, anteriormente, referida. Por um lado, o deputado do Partido Socialista Ascenso Simões sugeriu, num artigo de opinião que o monumento já devia ter sido destruído pela sua representatividade ideológica. Por outro, e passados alguns dias, o partido de extrema-direita português (Chega) decidiu apresentar “simbolicamente, no Padrão dos Descobrimentos, em Belém”, o seu primeiro candidato à Câmara Municipal de Lisboa.
Enraizada nesta discussão sobre o Padrão dos Descobrimentos, está a disputa sobre quem tem direito à memória e à cidade, sendo que, à luz do pensamento de Achille Mbembe (2014), os variados significados do monumento no espaço público representam a história e poderes institucionalizados e portanto não podem ser apartados de formas de poder e dominação.
A história ultramarina narrada pela metade renega a memória ancestral e é origem (também) do atual racismo, discriminação, desigualdade e silenciamento infligidos aos cidadãos portugueses negros e afrodescendentes. Sendo o espaço público casa comum e pertença de todos, existe toda a legitimidade para se questionar as representações e adequações dos seus elementos na contemporaneidade. Para mais, é a contínua falta de escuta ativa dos que detêm o poder institucional e histórico, que gera o incómodo, a indignação, a revolta. Desta forma, e fazendo uso da metáfora de Boaventura de Sousa Santos, o Padrão dos Descobrimentos saltou do passado e passou a ser parte do presente ao se tornar um objeto de contestação.
Com efeito, a discussão social e política é fundamental para que se distinga a realidade do mito, que o corpo social se reveja na história e se passe para a construção de um futuro comum.
Contem-se as glórias, não nos esqueçamos das tragédias.
O futuro comum com o passado de todos
Independentemente do poder institucional, a cidade de Lisboa é continuamente ressignificada pelos seus habitantes, que criam e imaginam novas simbologias.
Na linha do rio Tejo e ao lado do Padrão dos Descobrimentos, encontra-se o Espaço Espelho d’Água, onde artistas, pensadores, sonhadores africanos e afrodescendentes celebram a cultura africana. Em frente ao local, a água do rio Tejo reflete, simbolicamente, os rostos negros. Estes confundem-se com o monumento. Imagino o Padrão dos Descobrimentos como uma âncora – signo do conflito entre a terra e o mar – fixando o futuro de Portugal, impedindo a construção de uma sociedade mais igualitária, onde todas as vozes são escutadas e “motores” da mudança. Surge-me também a imagem de um astrolábio, instrumento fundamental na expansão marítima, e não esqueço que, antes da sua invenção, as civilizações africanas da Antiguidade já estudavam as estrelas.
Padrão dos descobrimentos 2021. © Rui Sérgio Afonso
A criação de um novo equilíbrio social passa pelo diálogo e pelo envolvimento de TODOS na resolução deste conflito de memórias e resignificações dos monumentos na praça pública, o que, no atual contexto, requer a passagem da negação das tragédias para o seu reconhecimento. Faça-se um mea culpa, com restabelecimentos da memória, para que não sejam perpetuados os mesmos erros, e assim será possível reinventar um futuro comum português com o passado de todos e para todos.
Encaremos as tragédias que nos contam as glórias.
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BIBLIOGRAFIA
Bethencourt, Francisco (2017), “Racismo e Cidadania”, https://padraodosdescobrimentos.pt/wp-content/uploads/2019/03/ENSAIO_Prev_compressed.pdf
e-Cultura (s.d.), “RETORNAR – Traços de Memória”, link verificado à data de 26/03/2021, https://www.e-cultura.pt/evento/1419
Kilomba, Grada (2019): Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Quotidiano , Orfeu Negro: Lisboa, pp. 5-6
Lusa (2021), “Comunicador Nuno Graciano é o candidato do Chega à Câmara de Lisboa”, Público , https://www.publico.pt/2021/03/15/politica/noticia/comunicador-nuno-graciano-candidato-chega-camara-lisboa-1954423
Mbembe, Achille (2014), Crítica da Razão Negra , Antígona: Lisboa (tradução de Marta Lança)
Peralta, Elsa (2013): “A composição de um complexo de memória: o caso de Belém, Lisboa”, in : Domingos, N. & Peralta, E. (orgs.) (2013), Cidade e Impé rio: Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós-coloniais, pp. 361-407, Edições 70: Lisboa
Simões, Ascenso (2021), “O salazarismo não morreu”, Público , link verificado à data de 26/03/2021, https://www.publico.pt/2021/02/19/opiniao/opiniao/salazarismo-nao-morreu-1951297