O maior de todos os monumentos erigidos pelo mundo fora a Otto von Bismarck — o primeiro chanceler do Império Alemão — ergue-se em Hamburgo a 34 metros de altura. Durante muito tempo esta construção quase caiu no esquecimento, viu-se coberta de graffiti e envolta por um parque urbano degradado. Desde o início de 2020 e até 2021 o gigante de pedra está a ser alvo de obras de restauro no valor de nove milhões de euros, tendo voltado a estar no centro de intensos debates. Afinal, o que está ali a ser polido e embelezado? De que importância se reveste esta estátua numa época pós-colonial em que outros monumentos são derrubados? Qual a razão para esta gigantesca construção ter sido erigida em Hamburgo?
Otto von Bismarck (1815-1898) foi, entre 1871 e 1890, o primeiro chanceler do Império Alemão, depois de, em resultado de três guerras de âmbito europeu, ter conseguido unificá-lo como um Estado. Bismarck era um antidemocrata, que pretendia fazer prevalecer as “grandes questões” com recurso a “ferro e sangue”. Os setores conservadores da nação agradeceram-lho postumamente: por todo o mundo foram erigidos mais de 300 monumentos a Bismarck, incluindo no Togo, nos Camarões e na Papua-Nova Guiné.
Apesar de Bismarck se manter bem presente na memória coletiva enquanto importante estadista europeu e arquiteto da unificação do Império Alemão, o seu papel no colonialismo alemão e europeu é frequentemente minimizado.
Postal de Hamburgo com o “selo” de Bismarck. Os grandes comerciantes de Hamburgo — de entre os quais se destacou Adolph Woermann — souberam ir em busca do “selo de aprovação” de Bismarck, assegurando assim o empenho do poder imperial na defesa dos seus interesses económicos ligados às colónias, sobretudo em África. Colagem: © afrika-hamburg.de
Durante bastante tempo, Bismarck terá manifestado uma postura algures entre a reserva e a recusa relativamente à aquisição de colónias. No entanto, tal não se deveu de todo a quaisquer escrúpulos morais que pudesse ter: acima de tudo, duvidava das vantagens que a política colonialista teria para o Império Alemão. Ainda assim, Bismarck não deixou desde meados da década de 1870 de conduzir ações de política europeia em África. Dispunha de um fundo de reserva para assuntos relacionados com esse continente, que atingia os 200 000 Reichsmark anuais e era financiado com dinheiro dos impostos, mediante o qual promoveu “viagens de investigação” — que na realidade revelaram ser missões de reconhecimento territorial, com vista a preparar uma possível colonização posterior. Com recurso a este “Fundo Africano” foram financiadas diversas expedições supostamente “com fins científicos” a Angola, ao Norte de África e à África Oriental, aos rios Níger e Congo. Em 1876 foi fundada a Deutsche Afrika-Gesellschaft (Sociedade Alemã para a África), que a par do apoio de promotores privados era também financiada com dinheiros estatais [1].
Colonizar, nacionalizar os prejuízos, privatizar os lucros
Bismarck e os comerciantes de produtos coloniais de Hamburgo tinham começado por apostar no comércio livre e na criação de um império comercial de caráter informal. De início, o chanceler não considerava oportuno estabelecer colónias, que no seu entender representariam elevados custos financeiros para o Império. Com recurso a tropas paramilitares próprias e a brutais “expedições punitivas”, as casas comerciais de Hamburgo tinham-se apropriado de terras e obrigado a população a realizar trabalho forçado nas suas plantações. No entanto, à medida que a resistência da população colonizada foi crescendo e que também a concorrência das potências europeias se foi intensificando na costa africana, os comerciantes aperceberam-se da necessidade de contarem com a “proteção imperial” para preservarem os seus interesses comerciais.
Foram sobretudo os lobistas, de entre os quais se destaca Adolph Woermann, presidente da Câmara de Comércio de Hamburgo, que — através de memorandos com petições para a criação de uma frota e de visitas frequentes a Bismarck, na sua propriedade de Sachsenwald — insistiram com o chanceler para o estabelecimento de colónias.
Após a adoção por parte do Império Alemão de uma política ativa de colonização, o Fundo Africano foi dissolvido em 1887. Com efeito, viria a provar-se que Bismarck tinha razão: em termos de economia nacional, a política colonial revelou-se um negócio que deu prejuízo, ao passo que alguns dos indivíduos que dirigiam o comércio colonial conseguiram obter elevados lucros das suas atividades.
A Conferência de Berlim e o estabelecimento de colónias alemãs
Quando o imperador Guilherme II anunciou a sua nova política de criação de uma frota de guerra e recorreu ao lema “O futuro da Alemanha está na água” — reclamando assim prestígio e influência a nível internacional para o Império Alemão —, as palavras do soberano soaram como música nos ouvidos dos armadores, banqueiros e senhores do comércio colonial de Hamburgo.
Para clarificação das reivindicações de poder concorrentes entre os diversos estados europeus, o chanceler convidou-os para participarem na chamada Conferência de Berlim (1884/1885), na qual se discutiu e decidiu em que moldes seria feita a divisão do continente africano entre as nações industrializadas mais ricas. Não foram convidados quaisquer representantes dos países africanos.
Após a realização da Conferência de Berlim, o Império Alemão tomou posse das suas colónias. O bairro da Speicherstadt (“Cidade dos Armazéns”), em Hamburgo, tornou-se assim, a partir de então, o maior complexo a nível mundial de armazéns destinados a albergar produtos coloniais. Em 1888, a cidade de Hamburgo aderiu ao Deutscher Zollverein (União Aduaneira Alemã), depois de os comerciantes se terem apercebido que essa adesão permitiria ter acesso a apoios financeiros consideráveis para a criação de mais instalações portuárias.
Nos territórios em África, na Ásia e na Oceânia que eram designados como “protetorados alemães”, tanto Bismarck como os chanceleres que se lhe seguiram promoveram a criação de administrações coloniais e, a partir do porto de Hamburgo, enviaram soldados, armamento e navios de guerra. Do ponto de vista económico, as colónias geraram prejuízo para o Império Alemão, mas as casas comerciais de Hamburgo puderam realizar negócios com lucros bastante elevados.
Já as consequências da política colonial alemã para as populações colonizadas representam um custo impossível de compensar. Sob o domínio estrangeiro, essas populações tiveram de suportar a expropriação e tomada de posse sistemática das suas terras, a aplicação de castigos corporais, a condenação a uma vida de trabalhos forçados, além da perda de vidas humanas em campanhas militares de extermínio, guerras e ações de genocídio.
Também Bismarck teve lucros esplêndidos em resultado do comércio colonial. Presume-se que, juntamente com Adolph Woermann e outros fabricantes de aguardente de Hamburgo, o chanceler tenha estado envolvido num lucrativo negócio de venda de bebidas alcoólicas em África. Na década de 1880 sessenta por cento de todas as exportações para as colónias consistiam em álcool de qualidade inferior. As bebidas espirituosas foram adotadas como um meio de pagamento generalizado, com consequências devastadoras, pois tal originou uma forte dependência do álcool em muitas regiões de África. Bismarck impediu todas as tentativas que visassem controlar as exportações de aguardente. As críticas que se fizeram ouvir ao longo de vários anos, sobretudo por parte dos sociais-democratas no Reichstag — o parlamento do Império Alemão — ou pela voz dos missionários, não tiveram quaisquer efeitos práticos [2].
O Monumento a Bismarck em Hamburgo: também um monumento ao colonialismo
Face aos lucros obtidos através do comércio colonial torna-se claro por que razão um tal monumento em honra de Bismarck foi erigido precisamente em Hamburgo — uma cidade-estado que, de resto, se recusava o mais possível a aceitar as influências prussianas.
O Monumento a Bismarck em Hamburgo, construído em 1906, no auge da era imperialista na Alemanha, exprime o agradecimento da elite comercial desta cidade pelo estabelecimento de colónias e pela ampliação do porto. Com efeito, o monumento não visa celebrar qualquer patriotismo fervoroso ou entusiasmo pelo Império Alemão, constituindo antes um “instrumento … de um frio cálculo comercial” [3]. Não admira, pois, que a lista dos seus promotores e principais patrocinadores possa ser lida como um who’s who dos mais influentes comerciantes, banqueiros e armadores de Hamburgo com ligações às políticas coloniais.
Woermann é reconhecido como o “fundador” da colónia alemã dos Camarões, sobre a qual adquiriu direitos de soberania a partir de 1884. Nas suas gigantescas plantações no monte Camarões a população colonizada era sujeita a trabalhos forçados. O seu exército privado reprimiu os tumultos que se geraram contra o poder colonial com recurso à política de terra queimada.
Woermann dispunha de uma posição quase monopolista no envio por navio, a partir do porto de Hamburgo, tanto de soldados para as colónias como do respetivo armamento, pelo que cobrava custos de transporte exageradamente elevados.
Na colónia do Sudoeste Africano Alemão este comerciante conseguiu obter lucros do genocídio praticado contra os Herero e os Nama: quando os sobreviventes da campanha de extermínio regressaram do deserto, Woermann mandou construir campos de concentração privados para os recolher, de onde seguiam depois para realizar trabalhos forçados nos seus navios e para a OMEG, uma empresa que explorava e transportava por ferrovia o minério extraído na região de Otavi. A OMEG fornecia cobre à Norddeutsche Affinerie (atualmente Aurubis) — com sede em Veddel, Hamburgo — além de outras empresas. Os dados referentes tão-só a abril de 1906 documentam a presença nas minas de cobre da OMEG de 620 crianças, 700 mulheres e 900 homens a realizar trabalhos forçados [7]. Muitos dos detidos eram obrigados a trabalhar na construção da via férrea no meio do deserto. Woermann explorou ainda um lucrativo negócio de exportação de aguardente para África, podendo presumir-se que o próprio Bismarck terá daí obtido um rendimento considerável [8].
Por decisão de uma reunião de assembleia autárquica do bairro de Hamburg-Nord, está pendente o processo de alteração do nome de duas ruas que ostentam o apelido deste importante colonialista. As associações de descendentes das vítimas do genocídio contra os Herero e os Nama propuseram a atribuição de novos nomes às ruas.
A figura de Bismarck, representada como a de Rolando, transmite uma mensagem deliberadamente ambígua: à primeira vista, o monumento parece jurar fidelidade ao império sob comando prussiano; em sentido contrário vai o simbolismo integrado numa figuração que se assemelha à do herói medieval Rolando, enquanto patrono do comércio livre e dos interesses comerciais da grande burguesia. Do alto da colina que se ergue acima do rio Elba, a figura de Bismarck em pedra dirige o olhar para jusante, mantendo “a guarda sobre os mares mundiais” [9], com “uma imponente vista a partir do centro da cidade, dirigida ao tráfego internacional” [10]. Não é por acaso que esta poderosa sentinela abrange ainda com o olhar a arquitetura também ela modernista das Landungsbrücken, o desembarcadouro onde atracavam e de onde partiam os navios que cruzavam os oceanos. Na fachada do edifício desse desembarcadouro, concebida ao estilo da Arte Nova, existem figuras de pedra em tamanho superior ao natural, testemunhos de uma visão racista exotizante, que simbolizam os continentes — África, Ásia e América — colonizados a partir de Hamburgo.
Figuras de pedra nas Landungsbrücken. Graças ao local elevado onde o Monumento a Bismarck em Hamburgo se encontra implantado, dispõe-se do topo da estátua de contacto visual direto com as figuras de pedra que nas Landungsbrücken simbolizam os continentes. Essas esculturas de inspiração racista e exotizante foram ali instaladas um ano após a inauguração do Monumento a Bismarck. Fotos: © afrika-hamburg.de
O Monumento a Bismarck ergue-se na extremidade leste da chamada Hafenkrone (“coroa portuária”), um projeto urbanístico que compreende diversas construções imponentes, situado na colina com vista sobre o Elba, e que não deixa de estar intimamente ligado a toda a navegação colonial que se realizou a partir de Hamburgo: aí se situou também o antigo edifício da Deutsche Seewarte (Observatório Marítimo Alemão) — com atribuições de investigação nas áreas da navegação marítima, hidrografia e climatologia — e se situa ainda o edifício da antiga Escola de Navegação, bem como o Instituto Bernhard Nocht de Medicina Tropical.
Desde o início que o enorme monumento erigido em Hamburgo se revelou controverso. A classe trabalhadora não compareceu na inauguração, realizada em 1906, ao passo que associações nacionalistas encararam Bismarck como um herói e ocuparam o parque junto ao Elba para aí realizarem as suas reuniões ritualizadas.
Após a Segunda Guerra Mundial procedeu-se à plantação de um grande número de árvores já quase adultas nesse parque, de modo a que aquele símbolo de uma outra época pudesse furtar-se aos olhares do público. Quando o poder executivo do Senado de Hamburgo foi assumido em conjunto pela CDU e por um pequeno partido da direita populista liderado por Ronald Schill, entre 2001 e 2003, a estátua de Bismarck foi iluminada e os admiradores de Bismarck promoveram o desbaste de árvores entretanto crescidas, para libertar eixos paisagísticos que permitissem ver o monumento. Quando esta renovação foi inaugurada, teve lugar um desfile de associações de extrema-direita e de neonazis. Entre 2014 e 2019 foram tomadas decisões na Hamburgische Bürgerschaft, o parlamento da cidade-estado, no sentido de o Monumento a Bismarck e o parque circundante serem objeto de obras de restauro.
A recuperação teve início em março de 2020, deverá estar terminada em finais de 2021 e tem dado origem a acesos debates. Deste modo, os dispendiosos trabalhos de recuperação do Monumento a Bismarck passaram a ser um indicador do quanto a cidade de Hamburgo está a levar a sério a “abordagem crítica do seu legado colonial” e o “novo começo numa cultura da memória”, tarefas a que a cidade explicitamente se propôs.
Em 2013 foi, para esse efeito, criado um centro de investigação na Universidade de Hamburgo. Em 2017 o Ministério da Cultura e dos Media da cidade-estado convocou uma plataforma de discussão, a que deu o nome de “Mesa-redonda Legado Colonial”. Em 2019 esse organismo público constituiu o Conselho Consultivo para a Descolonialização de Hamburgo.
Por surpreendente que possa parecer, nos documentos que fundamentam as decisões da Bürgerschaft a este respeito [11] não existe qualquer referência ao papel que Bismarck desempenhou na história global. Iniciativas por parte da sociedade civil consideram urgentemente necessário que, também do ponto de vista da história colonial, sejam investigadas a fundo as motivações para a construção do enorme Monumento a Bismarck na cidade que é a “Porta para o Mundo”. Só após a realização de uma tal análise histórica, com uma perspetiva global, poderá ser cabalmente entendida e debatida a importância do monumento, para a seguir se poder justificar a maneira mais adequada de lidar com ele.
A Initiative Decolonize Bismarck exige que se interrompa as obras de restauro e se realize uma nova discussão com uma participação mais determinante de descendentes dos povos colonizados, de modo a impedir a promoção do colonialismo e, desse modo, também do racismo.
Setembro de 2020
Tradução: Paulo Rêgo
[2] Klaus J. Bade, Friedrich Fabri und der Imperialismus der Bismarckzeit. Revolution - Depression – Expansion [Friedrich Fabri e o imperialismo da época de Bismarck. Revolução – Depressão – Expansão], 1975/2000. Ver também http://www.afrika-hamburg.de/bismarcke.html (15/08/2020); ver ainda Friedrich Engels, que, a propósito dos fidalgos latifundiários da Prússia Oriental e dos destiladores de aguardente, escreveu o seguinte: “Para onde quer que nos viremos, por todo o lado encontramos bebidas espirituosas prussianas. … A aguardente de batata é para a Prússia aquilo que o ferro e os artigos em algodão são para a Inglaterra; é o artigo que a representa no mercado mundial.”, incluído em “Preußischer Schnaps im Deutschen Reichstag [Aguardente prussiana no Parlamento Alemão]”. Texto original online: http://www.mlwerke.de/me/me19/me19_037.htm (15/08/2020)
[3] Susanne Wiborg, „Der größte Bismarck der Welt. Denkmale als Wirtschaftsfaktor: Wie es Hamburgs Kaufleuten um 1900 gelang, sich mit kolossalen Monumenten die Gunst von Kaiser und Reich zu sichern [O maior Bismarck do mundo. Os monumentos enquanto fator económico: como os comerciantes de Hamburgo de 1900 conseguiram, mediante colossais monumentos, assegurar os favores do imperador e do império]”, publicado no jornal ZEIT, 01/06/2006. Texto original online: https://www.zeit.de/2006/23/A-Denkmal_xml/komplettansicht (15/08/2020)
[4] Henning Albrecht: „Diamanten, Dynamit und Diplomatie: Die Lipperts. Hamburger Kaufleute in imperialer Zeit [Diamantes, dinamite e diplomacia: Os Lipperts. Comerciantes hamburgueses na época imperial]”, Hamburgische Wissenschaftliche Stiftung [Fundação Científica de Hamburgo], Hamburgo, 2018. Texto original online: http://hup.sub.uni-hamburg.de/volltexte/2018/181/pdf/HamburgUP_MfW20_Lipperts.pdf (19/08/2020)
[6] Johannes Gerhardt, “Wohltätigkeit und Eigeninteresse: Edmund Siemers und die Motive des Stiftens [Beneficência e interesse próprio: Edmund Sievers e os motivos para a doação]“. Texto original online: https://netzwerk.hypotheses.org/2281 (19/08/2020)
[8] Klaus J. Bade, Friedrich Fabri und der Imperialismus der Bismarckzeit. Revolution - Depression – Expansion [Friedrich Fabri e o imperialismo da época de Bismarck. Revolução – Depressão – Expansão], 1975/2000. Texto original online: https://www.imis.uni-osnabrueck.de/fileadmin/4_Publikationen/PDFs/BadeFabri.pdf (06/09/2020). Ver também http://www.afrika-hamburg.de/bismarcke.html (19/08/2020)
[11] Os documentos encontram-se publicados em https://www.buergerschaft-hh.de/parldok/dokument/47328/haushaltsplan_2014_einzelplan_1_2_hamburg_2020_hamburg_sichert_die_kofinanzierung_fuer_den_erhalt_des_ensembles_bismarck_denkmal_alter_elbpark.pdf e em https://www.buergerschaft-hh.de/parldok/dokument/67998/sanierungsfonds_hamburg_2020_sanierung_und_instandsetzung_des_bismarck_denkmals.pdf (consultado a 19/08/2020)
Última edição em: 21/12/2024 13:44:19