A Loki Schmidt Haus [Casa Loki Schmidt] é o nome dado a um museu para plantas utilitárias da Universidade de Hamburgo. Esta instituição fica localizada num jardim botânico situado em Klein Flottbek e abriga uma coleção botânica com cerca de 50 000 espécimes. Tanto o museu quanto o jardim possuem ligações bastante estreitas aos comerciantes de Hamburgo, ao comércio e ao colonialismo.
Passados alguns meses, os cacaueiros de Ohene Nyarko deram flor e de seguida frutos dourados, esverdeados e alaranjados. Ele tinha conseguido obter as sementes em Osu. Dizia-se que alguém levara para lá uma nova planta que, também por ali, poderia crescer bem. Os aldeões nunca tinham visto nada assim, pelo que estavam ansiosos por tocar e abrir as vagens, antes mesmo de estas estarem maduras. Eis a cena narrada por Yaa Gyasi no seu romance Rumo a Casa. ”Mas iremos nós poder viver disso?” perguntaram, em meados do século XIX, as pessoas daquela aldeia situada perto de Kumasi, ao depararem-se com os pequenos grãos de cor arroxeada no interior da polpa branca, que depois espalharam sobre uma cama de folhas de bananeira [1].
Vagens de cacau em Kumasi, Gana. Foto: © Daniel K. Manwire
É num tom quase casual que a jovem autora Yaa Gyasi ilustra no seu romance o modo como o cacaueiro, uma planta originária da América Central, foi introduzido no território do atual Gana. Hoje em dia este país da África Ocidental destaca-se como um dos principais exportadores de cacau de todo o mundo. As diferentes espécies do género
Theobroma
contam-se entre os espécimes vegetais mais bem – e mais frequentemente – representados na secção africana da Coleção Botânica da Loki Schmidt Haus
[2]. O Museum für Nutzpflanzen [Museu de Plantas Utilitárias] da Universidade de Hamburgo possui uma longa história e a coleção que foi acumulando ao longo dos tempos encontra-se intimamente ligada ao colonialismo de Hamburgo
[3].
Nozes de galha e cafeeiros
A par do café, do cauchu e dos cocos, o cacau é considerado uma ”planta colonial” típica. Juntamente com o ouro, a prata e o marfim, os produtos vegetais contavam-se entre os mais relevantes produtos importados pelos mercadores coloniais. Muitas dessas plantas consideradas úteis – as plantas usadas em tinturaria, tais como o índigo, bem como produtos relacionados, como a terebintina e outras resinas, ou ainda o algodão, o tabaco e a cana-de-açúcar – eram cultivadas, mantidas, colhidas e processadas em plantações situadas nas Américas, mediante trabalho realizado por escravos africanos, antes sequer de chegarem às cidades portuárias de Hamburgo e Altona.
”Além disso, para o comerciante instruído, ainda que possa não ser-lhe útil, não lhe será decerto agradável poder familiarizar-se com as plantas de cujos produtos se ocupa diariamente?” [4]. Foi esta a pergunta colocada pelo médico e botânico Johannes Flügge em 1810, ao apresentar o seu plano para a criação de um jardim botânico. ”Que valor atribuem afinal os proprietários de uma estufa a um arbusto de café ou a um pé de cana-de-açúcar? Ser-lhes-á porventura menos agradável contemplar essas plantas em estado vivo do que as várias espécies vegetais que fornecem o algodão, o tabaco, o chá, o arroz e as alcaparras, os corintos e os pistácios? Ou o índigo, o oleandro, a garança e as nozes de galha, as bagas de espinheiro, a baunilha, o gengibre, o alcaçuz, a barrilha, o cauchu e as resinas, a terebentina, a cânfora, o mogno, o pau-de-campeche e o pau-brasil, etc.? Conseguir-se-á prever e calcular qual a utilidade que a aplicação destes conhecimentos poderia vir a ter?” [5]. O seu jardim botânico, criado nas margens do Alster, não durou sequer três anos. Em maio de 1813, o Exército francês arrasou todas as plantas, lenhosas e subarbustivas, que ali encontrou.
De jardim privado a instituto estatal e depois a museu
Alguns anos mais tarde, Johann Lehmann, um professor de Ciências Naturais, foi mais bem-sucedido. Em 1818, o Senado de Hamburgo nomeou-o para presidir ao Akademisches Gymnasium, uma entidade precursora da Universidade de Hamburgo, esta última fundada apenas em 1919. No outono de 1821 foram plantadas as primeiras árvores no Jardim Botânico. Hoje em dia é nesse espaço que fica situado o parque Planten un Blomen.
Em 1857, as autoridades de Hamburgo promoveram o Jardim Botânico a instituto estatal. No entanto, o plano de Lehmann no sentido de se criar um museu botânico não pôde ser concretizado. De facto, tal intuito apenas conseguiu ser transformado anos mais tarde, em 1883 – pela mão de Richard Sadebeck, professor da Gelehrtenschule des Johanneums, um importante liceu e o mais antigo de Hamburgo – depois de a cidade ter recebido duas importantes coleções botânicas, cedidas por cidadãos abastados. Foi a inauguração dessa instituição que conseguiu motivar os comerciantes e comandantes de navios a doarem mais objetos às coleções do Museu Botânico: essa é a opinião da bióloga Gabriele Kranz, que na Universidade de Hamburgo investiga o papel dos comerciantes coloniais da cidade hanseática na fundação deste museu. «Além disso», escreve ainda Kranz, ”as casas comerciais de Hamburgo precisavam de uma coleção de referência independente, bem como de um laboratório de testes que lhes assegurasse a classificação e a qualidade das plantas e respetivos produtos, tendo por isso sido encorajada a realização de doações ao museu” [6].
Um presente de Adolph Woermann: A ”artéria” oca formada pelas raízes de uma figueira-estranguladora, proveniente da floresta tropical dos Camarões e patente na exposição da Loki Schmidt Haus. Foto: © Anke SchwarzerO porto, o comércio e a indústria
Durante muito tempo, o porto de Hamburgo sempre fora a porta que permitia o acesso da Alemanha ao mundo colonial, mas a partir de 1884, com o início da ocupação e colonização de territórios por parte dos alemães em África, na Ásia e na Oceânia, a importação de matérias-primas, de alimentos e de artigos de mercearia fina aumentou consideravelmente – e desta resultou também um aumento de objetos que vieram enriquecer o espólio do Museu Botânico. Ainda hoje, o enorme «tubo» formado pelas raízes aéreas de uma figueira-estranguladora, originária dos Camarões, ocupa um lugar de destaque no museu. Foi em 1889 que o comerciante, armador e político de Hamburgo Adolph Woermann doou esse objeto à instituição: o mesmo homem que promovera a colonização dos Camarões mandou que se transportasse, num dos seus navios a vapor, essa árvore em várias secções, para ser exibida na sua cidade natal.
Após a fundação do Instituto Colonial em 1908, o número de objetos provenientes de África, sobretudo das colónias alemãs dos Camarões e da África Oriental Alemã, continuou a aumentar rapidamente. A partir desse momento as entregas passaram a ser realizadas não só pelos comerciantes abastados, mas também pelos botânicos estatais espalhados pelas colónias do Império Alemão
[7].
No outono de 1821, o Prof. Lehmann plantou no Jardim Botânico um plátano (Platanus hispanica). Atualmente essa velha árvore ergue-se nas imediações do CCH (Congress-Center Hamburg). Foto: © Anke Schwarzer
O Museu Botânico alberga também espécimes cedidos por Amalie Dietrich. Ao longo de dez anos, sob incumbência do empresário Johan Cesar Godeffroy, Amalie Dietrich procedeu no nordeste da Austrália à recolha, prensagem, preservação ou taxidermia tanto de plantas como de animais. Ano após ano, foi cuidadosamente preparando e remetendo aves e aranhas para Hamburgo, bem como exemplares de gramíneas, algas, fetos e musgos. Nas caixas por ela enviadas para o Museu Godeffroy encontravam-se também crânios e esqueletos do povo aborígene Birri Gubba e de outras populações que haviam vivido em redor de Bowen, em Queensland, e tinham sido expulsas e mortas por colonos europeus. Em 1886, a cidade de Hamburgo adquiriu uma parte da coleção desse museu privado. Partes da coleção botânica preparada por Dietrich encontram-se atualmente na Loki Schmidt Haus
[8].
Violência das condições de trabalho nas plantações coloniais
Hamburgo deixou de ser apenas uma cidade comercial, evoluindo também no sentido de se tornar uma importante localização industrial. O chocolate, a juta e a borracha: todas essas matérias-primas vegetais eram aqui transformadas, era-lhes acrescentado valor. Prensas extraíam não apenas o óleo da copra, o miolo da noz do coco, como também espremiam o dendém, juntamente com as sementes. À medida que a produção de sabão, margarina, cosméticos, estearina e glicerina se foi desenvolvendo em Hamburgo, toda a produção tradicional relacionada com o óleo de palma na África Ocidental quase sucumbiu. O cauchu e o dendém eram cada vez menos obtidos a partir de árvores existentes em estado selvagem, sendo antes recolhidos em grandes plantações. Em consequência disso, muitas pessoas foram expulsas das suas terras, sujeitas a trabalho forçado e condenadas à pobreza. O regime laboral colonial ficou profundamente marcado pela violência.
O Museu Botânico ao serviço do desenvolvimento económico
Pode dizer-se que o Museu Botânico de Hamburgo esteve ao serviço destas empresas: o seu pessoal proporcionava aconselhamento a empresas comerciais, realizava amostras aleatórias de sacos de café e elaborava pareceres especializados acerca de matérias-primas de origem vegetal. Inspecionavam-nas quanto a pragas e infestações, também ao nível das sementes. Em 1885, o museu criou um ”Laboratório de Tecnologia Industrial”. Nos anos que se seguiram, foram criados um ”Departamento de Controlo de Sementes” e uma ”Estação para Proteção de Plantas”, que visavam o controlo dos bens de origem vegetal desembarcados no porto. Em 1912, esses departamentos vieram a ser integrados no Instituto Estatal de Botânica Aplicada. Este último mantinha um escritório na Bolsa de Hamburgo, a fim de poder aconselhar os comerciantes diretamente no local.
Antigo edifício dos Institutos Estatais Botânicos de Hamburgo na Jungiusstraße. Foto: © Anke Schwarzer
"O grande salão de exposições" - Jahrbuch der Hamburgischen Wissenschaftlichen Anstalten. XXV. Jahrgang, 1907 [Anuário das instituições científicas de Hamburgo, Ano XXV, 1907], Kommissionsverlag von Lucas Gräfe & Sillem, Hamburgo, 1908. Foto: © J. Rompel
Antigo edifício dos Institutos Estatais Botânicos de Hamburgo na Jungiusstraße. Foto: © Anke Schwarzer
Os legados do colonialismo são de vária ordem – manifestam – se tanto no museu quanto no jardim, mas também têm implicações no conhecimento de que atualmente se dispõe e na história da ciência. Como poderemos desconstruir o olhar colonial eurocêntrico na nomeação de espécies vegetais ou na análise da utilidade do cultivo de certos frutos em territórios colonizados? Que abordagem é adotada para a assimilação e exploração do conhecimento indígena? E como pode o
debate pós-colonial em torno do material de arquivo e dos espécimes da coleção ser tematizado e comunicado ao público sem que, ao mesmo tempo, estejam a ser reproduzidas toda uma série de imagens e de sistemas de conhecimento racistas? Como poderá ser organizada a cooperação com institutos botânicos em países outrora colonizados?
Como abordar o legado colonial?
”Enquanto equipa atualmente responsável pelos destinos do museu, encontramo-nos em meio a um processo de sensibilização e autorreflexão, no qual observamos e avaliamos cuidadosamente cada objeto da nossa coleção”, refere Petra Schwarz, que dirige a Loki Schmidt Haus [9].
Passou a haver mais cuidado quanto à utilização de certos materiais de arquivo, tais como os diapositivos de grande formato. Muitas imagens poderiam ser classificadas como exemplos de ”racismo na cultura visual”. Além disso, a Coleção de Botânica Aplicada da Universidade de Hamburgo foi uma das 25 instituições na Alemanha selecionadas para a fase-piloto do projeto ”Lidar com coleções de teor colonial”, levada a cabo pela Conferência de Ministros da Educação e Assuntos Culturais dos diferentes
Länder
da Alemanha. Segundo Schwarz, este é mais um elemento a ter em conta na abordagem dos legados coloniais.
E o cacau? Hoje em dia, tal como dantes, são muitas as pessoas no Gana que se questionam como irão conseguir pagar as suas contas, tendo em conta o baixo preço do cacau. Sandra Kwabea Sarkwah, gestora de projeto da SEND GHANA, uma ONG que visa a promoção da igualdade em diversas áreas, declara que o preço é ditado aos países produtores, o que constitui ”uma nova forma de colonialismo” [10].
Os vestígios da era colonial ainda hoje se fazem sentir tanto na área do estudo científico das plantas como na agroindústria. São de natureza múltipla e díspar e será decerto preciso muito tempo e muito esforço para os desmantelar.
Tradução: Paulo Rêgo
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NOTAS
[1] Yaa Gyasi, Rumo a Casa, tradução de Maria do Carmo Figueira, Presença, 2017.
[2] Gabriele Kranz, ”Hamburg’s Botanical Museum and German colonialism: nature in the hands of science, commerce and political power” (pág. 71), in: Maano Ramutsindela, Giorgio Miescher, Melanie Boehi (org.), The Politics of Nature and Science in Southern Africa, Basler Afrika Bibliographien, Basileia, 2016 (págs. 59 a 86).
[3] Tanto o Museu de Plantas Utilitárias como o Jardim Botânico da Universidade de Hamburgo foram rebatizados (em 2006 e em 2012, respetivamente) com o nome de Loki Schmidt (1919 - 2010), uma professora e botânica de Hamburgo. Em 1979, o Jardim Botânico da Universidade de Hamburgo foi transferido da sua antiga localização, próxima do centro da cidade, para Klein Flottbeck. Também o próprio museu mudou por diversas vezes a sua sede.
[4] Johannes Flügge, Plan zur Anlegung eines botanischen Gartens nahe bey Hamburg [Plano para a criação de um jardim botânico próximo de Hamburgo], Hamburgo, 1910 (pág. 8s), citado a partir de Hans-Helmut Poppendieck e Barbara Engelschall, 2020 (pág. 259).
[5] Ibidem.
[6] Gabriele Kranz, op. cit., (pág. 61).
[7] Gabriele Kranz, op. cit., (pág. 64 e 70).
[8] Para saber mais sobre Amalie Dietrich, leia-se:
– Kej Hielscher, Renate Hücking, ”Die „Frau Naturforscherin“ [A ”senhora naturalista”]. Amalie Dietrich (1821–1891), in: Pflanzenjäger: In fernen Welten auf der Suche nach dem Paradies [Caçadores de plantas. Em mundos longínquos, em busca do paraíso], Piper Verlag, Munique, 2002 (págs. 131–160);
– Birgit Scheps, ”Skelette aus Queensland [Esqueletos de Queensland]”, in: Holger Stoecker, Thomas Schnalke, Andreas Winkelmann, Sammeln, Erforschen, Zurückgeben? Menschliche Gebeine aus der Kolonialzeit in akademischen und musealen Sammlungen [Recolher, investigar, devolver? Ossadas humanas dos tempos coloniais em coleções em meio académico e museológico], Christoph Links Verlag, Berlim, 2013 (págs. 130–145).
[9] Informações prestadas por email em maio de 2021.
[10] Durch den Kakao. Botanik, Kolonialismus, Gegenwart [Pelo cacau. Botânica, colonialismo, atualidade], evento online organizado pela INKOTA (uma rede que visa sensibilizar para uma globalização mais justa), realizado a 18/11/2020.