Este recinto de casernas apresenta uma combinação de vestígios interligados entre o colonialismo alemão e o nacional-socialismo. E não apenas isso: o local tornou-se também um símbolo da complacência – na República Federal da Alemanha, em geral, e no seio da Bundeswehr, em particular — em relação aos atores coloniais e aos crimes que perpetraram. Diversas intervenções demonstram que não é simples contrapor uma narrativa democrática àquelas pesadas construções.
A Trotha-Haus, um dos edifícios que ostenta um nome atualmente polémico, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
A Trotha-Haus, um dos edifícios que ostenta um nome atualmente polémico, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
Os vidoeiros crescem bem altos diante dos antigos blocos residenciais das casernas, um riacho serpenteia por entre modernos edifícios de apartamentos destinados a famílias. Um baloiço, uma caixa de areia e um escorrega foram instalados num dos extremos da antiga parada da Caserna Lettow-Vorbeck. Esses equipamentos integram o parque infantil de uma creche que, em 2018, se mudou para a antiga messe dos oficiais. Sobre os relevos decorativos em terracota nas fachadas do edifício – que representam máscara de gás, granadas de mão e espingardas – esvoaçam atualmente pombas brancas, impressas numa faixa de material plástico amovível. Os símbolos de paz tapam outros, de natureza militar, que estão sob a proteção da defesa do património. Numa das construções ao lado, o retrato em relevo de Lothar von Trotha parece observar as crianças a brincar. Cinco dos edifícios desta antiga caserna são hoje utilizados pela Universidade da Bundeswehr como residência para os respetivos estudantes. [1] Em alguns fins de tarde, podemos observar esses jovens a fazerem churrascos no parque de estacionamento.
Cuidar de uma tradição colonial
“Um dos jovens estudantes nem sequer sabia quem era Von Trotha, ao passo que outro disse que sabia, mas que não lhe era permitido falar acerca disso.” Foi deste modo que em 2016, depois de visitar o local das antigas casernas, Jephta Nguherimo descreveu as suas impressões. Este descendente de vítimas do genocídio des Ovaherero vive em Washington, D.C., onde foi um dos fundadores do Ovaherero/Mbanderu and Nama Genocide Institute (ONGI – Instituto para o Genocídio dos Ovaherero/Mbanderu e dos Nama). Relatou ainda que estava deveras chocado pelo facto de, em Hamburgo, haver jovens alojados em instalações a cargo da Universidade da Bundeswehr que continuam a ostentar os nomes de chefes militares da era colonial: entre estes, figura também o de Von Trotha, que enquanto governador do Sudoeste Africano Alemão e comandante militar dessa colónia ordenou o extermínio dos povos Ovaherero e Nama. “Questiono-me sobre o que lhes terá sido dito a respeito de Von Trotha e por que razão não terão querido falar sobre isso”, declarou Nguherimo.
O nome do oficial da era colonial escolhido pelos nacional-socialistas para batizar a caserna foi depois mantido pela Bundeswehr e ainda hoje se encontra afixado na entrada para as instalações. © Anke Schwarzer
A Trotha-Haus é um dos edifícios deste complexo de casernas que os nacional-socialistas erigiram entre 1934 e 1938, no âmbito da política então seguida de reforço do armamento. Nesta área, que ocupa 35 hectares – e para a qual as autoridades de Hamburgo planeiam atualmente uma urbanização designada “Jenfelder Au”, que consistirá em mais de 700 habitações –, pretenderam os responsáveis nacional-socialistas da Wehrmacht manter viva a memória das batalhas travadas e dos soldados caídos ao serviço do exército colonial durante a Primeira Guerra Mundial. Desse modo, cada grupo de casernas recebeu o nome de um comandante militar colonial, a saber, Paul von Lettow-Vorbeck e Ludwig von Estorff. Qualquer dos dois esteve presente aquando da inauguração. Lettow-Vorbeck teve assim a oportunidade de transmitir as tradições das Schutztruppen coloniais aos batalhões do 69º Regimento de Infantaria.
Ação de protesto e recordação do 100º aniversário da Rebelião Maji Maji, ocorrida na atual Tanzânia, 2005 © Bildungsbüro Hamburg e.V.
Além disso, a Wehrmacht erigiu o “Schutztruppen-Ehrenmal” (Monumento às Schutztruppen), uma construção com um pilar em tijolo com mais de 10 metros de altura, encimado por uma águia imperial. Na parte inferior do monumento, placas memoriais enumeram os soldados do Império Alemão que morreram nas quatro colónias alemãs em África. [2] E sempre que os soldados bem familiarizados com a “manutenção das tradições” marchavam pela entrada principal do quartel, passavam pelo “Deutsch-Ostafrika-Kriegerdenkmal” (Memorial aos Combatentes da África Oriental Alemã), também ele inaugurado em 1939.
Em perfeita formatura
Os dois relevos em terracota desse Memorial aos Combatentes exibem, por um lado um oficial da Schutztruppe, de tamanho superior ao natural – que dirige um grupo perfilado de askaris (nome pelo qual ficaram conhecidos os soldados coloniais africanos) – e por outro um grupo de carregadores que seguem um askari. O memorial evoca uma impressão de grande harmonia. Morte e sofrimento? Terra queimada? Violações? Pilhagens? A guerra e a violência são realidades omitidas neste monumento.
Passeio performativo "Uhuru heißt Freiheit" (Uhuru significa liberdade), com Israel Kaunatjike, Zaida Horstmann e Christian Koop, 2013, © Anke Schwarzer
O memorial aos combatentes que ficou mais conhecido como Relevo dos Askaris, no bairro de Jenfeld, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
O memorial aos combatentes que ficou mais conhecido como Relevo dos Askaris, no bairro de Jenfeld, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
O memorial aos combatentes que ficou mais conhecido como Relevo dos Askaris, no bairro de Jenfeld, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
O memorial aos combatentes que ficou mais conhecido como Relevo dos Askaris, no bairro de Jenfeld, 2021, © Nicole Benewaah Gehle
Para além disso, os nacional-socialistas alimentaram a lenda da “lealdade dos askaris”, que supostamente sempre se teriam mantido fielmente ao lado dos exércitos coloniais alemães, em particular o comandado por Lettow-Vorbeck. Os askaris eram mercenários, na sua maioria provenientes de regiões que não aquela em que desempenhavam as suas missões militares. Por outro lado, no que diz respeito aos carregadores, mensageiros e batedores, estes eram com frequência civis que haviam sido sequestrados e forçados a trabalhar para as tropas alemãs. Muitos morreram, outros fugiram e, mesmo anos após o fim da guerra, houve alguns que ainda tentaram reclamar os pagamentos que tinham ficados pendentes. Um deles foi Mahjub bin Adam Mohamed Hussein.
Uma mudança de nome indesejável
Hussein era filho de um soldado, também ele mercenário, que havia participado, ao serviço dos alemães, na ocupação militar do território que corresponde à atual Tanzânia. Combateu como criança-soldado numa unidade comandada por Lettow-Vorbeck e, segundo a sua própria descrição, lutou contra o Exército britânico, enquanto “membro das tropas núbias”, na Primeira Guerra Mundial, juntamente com o seu pai. Em 1929, viajou de Dar es Salaam para Hamburgo. Decidiu simplificar o seu nome para melhor integração na Alemanha, passando a chamar-se Mohamed Husen. Requereu o pagamento de soldos em atraso, relativamente a si e ao seu pai; além disso, um pouco mais tarde, quando já os nacional-socialistas estavam no poder, requereu também a Cruz de Honra da Guerra Mundial. O próprio Lettow-Vorbeck considerou que conceder esta distinção a um soldado colonial africano seria “ir longe demais” e que “não era apropriado”. [3] Em 1941, sob o pretexto de manter uma relação com uma mulher ariana, Husen foi transportado para o campo de concentração de Sachsenhausen onde este homem, pai de dois filhos, veio a morrer em 1944.
Em 2003, a Caserna Lettow-Vorbeck foi temporariamente “rebatizada” como um parque com a versão simplificada para alemão do nome de Mahjub bin Adam Mohamed Hussein, © Anke Schwarzer
Em 2003, o seu nome foi impresso numa faixa que serviu para cobrir as letras afixadas à entrada para a Caserna Lettow-Vorbeck, se bem que tal apenas tenha acontecido por um breve período de tempo, até as autoridades se terem apressado a removê-la. Essa foi uma entre várias iniciativas que visaram protestar contra os planos de inauguração de uma área verde inocuamente apelidada de Tansania-Park (Parque Tanzânia), embora aí se pretendesse manter vivo o culto de certa memória com construções como o Monumento às Schutztruppen e o Memorial aos Combatentes da África Oriental Alemã (comummente conhecido como “Relevo dos Askaris”), cuja localização havia recentemente sido alterada. O culto dessa mesma memória veio ainda a ser reforçado, já nos tempos da República Federal da Alemanha, quando em 1966 se decidiu instalar uma placa que visava homenagear os soldados do Afrikakorps — uma força militar nacional-socialista — mortos em combate no Norte de África. [4] Passados tão-só dez anos após a vitória dos Aliados sobre o Terceiro Reich, as casernas voltaram a ser ocupadas por soldados alemães: a RFA foi autorizada a formar um exército. No bairro hamburguês de Jenfeld, a Bundeswehr decidiu manter o mesmo nome pelo qual, ainda não há muito, aquelas instalações eram designadas na era anterior à democracia – e, além disso, preservar também nas fachadas dos edifícios os medalhões com as efígies de criminosos coloniais.
Coroas de flores e guardas de honra
Ao deporem coroas de flores e organizarem cerimónias comemorativas, tanto os antigos como os novos soldados pretenderam honrar os feitos e os mortos das unidades militares alemãs que serviram nos conflitos coloniais e nacional-socialistas. Por esta altura, as suásticas na fachada e no Monumento às Schutztruppen haviam obviamente já sido removidas, até porque depois da libertação de Hamburgo, o Exército britânico ocupou as instalações e rebatizou-as com os nomes de St. Andrew’s Barracks e St. Patrick’s Barracks.
“Havia ali alguma coisa?” O projeto de referência para esta zona, denominado “Jenfelder Au” e apresentado em 2013 no âmbito da IBA, uma exposição internacional de arquitetura, não fez sequer referência aos vestígios do passado colonial e nacional-socialista aí presentes. © Anke Schwarzer
Desde que, em 1999, a Caserna Lettow-Vorbeck deixou de funcionar enquanto instalação militar que tanto arquitetos como políticos têm vindo a pensar no desenvolvimento urbanístico, na habitação e em modernos sistemas de gestão de águas residuais. No entanto, só raramente o debate se tem centrado no modo como lidar com o conjunto edificado das casernas, protegido ao abrigo das leis do património, bem como com os restantes vestígios de violência circundantes. Os planos que constavam do projeto de conversão, dados a conhecer aquando da Internationale Bauausstellung (IBA – Exposição Internacional de Arquitetura) de 2013, por exemplo, não mencionavam de todo o legado colonial e nacional-socialista deste lugar.
Local de aprendizagem? Monumento comemorativo? Demolição?
Através de performances, manifestações e passeios organizados, as iniciativas da sociedade civil vão lançando repetidas vezes um olhar crítico sobre a história e a situação presente deste local. Desde há vários anos que têm tentado prestar homenagem à resistência da população africana, sobretudo na Namíbia e na Tanzânia. Há duas décadas, a artista Hannimari Jokinen propôs o Park Postkolonial, que reuniria vários monumentos coloniais da cidade e os reorganizaria num novo contexto, criando assim pontos de vista e contranarrativas diferenciadas. Nesses planos cabiam ainda um centro educativo e um espaço dedicado à cultura. Outras iniciativas exigiam um memorial às vítimas do colonialismo.
Passeio performativo “Uhuru heißt Freiheit” (Uhuru significa liberdade), com Israel Kaunatjike, Zaida Horstmann e Christian Koop, 2013 © Anke Schwarzer
Em novembro de 2005, uma aliança de várias associações e iniciativas veio impedir uma cerimónia de deposição de coroas de flores que as associações de antigos combatentes ali haviam planeado para o Dia Nacional de Luto (em que se comemora os mortos das guerras). Precisamente nesse dia, essa aliança organizou uma manifestação de recordação do 100º aniversário da Rebelião Maji Maji (1905-1907) — ocorrida na Tanzânia, contra o poder colonial alemão na antiga África Oriental Alemã. Em contraste, a celebração “Kasernenechos: Widerstand und Widerhall” (“Ecos da caserna: resistência e ressonância”), que teve lugar em 2011 por ocasião do 50º aniversário da independência da Tanzânia, decorreu de um modo completamente diferente: a Polícia ordenou a dispersão das pessoas ali reunidas, tendo a iniciativa freedom roads! e os cerca de 40 participantes sido acusados de realizar uma “manifestação sem aviso prévio”.
Com água e cinzas, dissimulação e revelação, com esculturas vivas e “áreas em branco da memória”, os ativistas pretendiam enfrentar os monumentos coloniais do nacional-socialismo, ao mesmo tempo que criavam momentos temporários de uma cultura de memória pós-colonial que pudesse ser considerada digna. “Quem quer que dê o nome de “Parque da Tanzânia” a um pequeno jardim vedado, onde existem monumentos coloniais da época nazi, escarnece das numerosas vítimas do regime colonial alemão e demonstra total falta de respeito”, declarou Mnyaka Sururu Mboro, um dos participantes naquela ação.
Silenciamento e desconsideração das vítimas
Os protestos continuaram. Em 2017, a Association of the Ovaherero Genocide in the USA (AOG – Associação do Genocídio dos Ovaherero nos EUA) dirigiu uma carta aberta à cidade de Hamburgo: “Von Trotha foi um criminoso de guerra e não deveria ser tratado como um herói nem glorificado pela cidade de Hamburgo e pelo seu povo, que porventura não terá conhecimento do verdadeiro papel desempenhado por esse indivíduo no extermínio dos Ovaherero e dos Nama.” [5] Com efeito, segundo Ngondi A. Kamaṱuka, Tunee Tjirongo, Veraa Katuuo e outros membros do conselho da AOG, Von Trotha mandou envenenar os poços existentes e conduzir os homens, mulheres e crianças desarmados para o deserto onde muitos vieram a morrer de sede.
Visita de uma delegação de representantes dos povos Ovaherero e Nama, da Namíbia e dos EUA, 2018, © Anke Schwarzer
A AOG não recebeu qualquer resposta à carta aberta. Ainda assim, em 2018, junto à entrada da Trotha-Haus, através da qual os soldados uniformizados da Bundeswehr entram e saem com frequência, foram colocadas placas informativas. É evidente que essas pequenas placas não se impõem face à expressividade do conjunto arquitetónico das casernas nem tão-pouco impedem a veneração do autor de um genocídio — para não falar do quanto são ineficazes a proporcionar qualquer recordação digna das vítimas e daqueles que, através da luta, resistiram aos crimes coloniais.
Tradução: Paulo Rêgo