Chilehaus

© Nicole Benewaah Gehle, 2021

Chilehaus

Um edifício que representa o incómodo em Hamburgo

Tania Mancheno Moncada
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Com base na história da Chilehaus, é possível reconhecer por um lado a ligação entre o símbolo do navio e a história da escravatura; por outro, reconstroem-se as interligações entre a liberdade de circulação, do Norte Global para o Sul Global, e o extrativismo, isto é, a extração sistemática de recursos ambientais do Sul Global para o Norte Global.

Construída entre 1922 e 1924 e situada bem próximo da Speicherstadt, a Chilehaus ("Casa do Chile") é a mais proeminente das Kontorhäuser [1] de Hamburgo. Em termos arquitetónicos, este edifício desenhado pelo austríaco Fritz Höger, que concebeu várias construções impactantes em Hamburgo [2], é conhecido mundialmente pelo seu estilo expressionista. A Chilehaus está localizada no centro histórico de Hamburgo, entre outras duas Kontorhäuser, o edifício Sprinkenhof e o edifício Meßberghof. Neste último, funciona o Chocoversum, um museu da empresa Hachez (oriunda de Bremen) cujo tema é o chocolate.

No início da década de 1920, o dono da obra e responsável pelo nome atribuído ao edifício, um magnata [3] de Hamburgo chamado Henry Brarens Sloman, mandou erigir a construção num terreno que lhe fora doado pela cidade, de aproximadamente 5000 m². Nesse local, que ocupa um quarteirão inteiro, haviam anteriormente vivido trabalhadores portuários e as respetivas famílias que, para a construção poder ser iniciada, tiveram de ser realojadas em Barmbek [4]. Estima-se que vinte mil pessoas tenham sido forçadas a abandonar as suas casas [5]. A escala deste projeto de construção e outros em redor demonstra que já no início do século passado a cidade terá definido como prioridade um centro urbano dedicado aos grandes comerciantes, em detrimento da habitação para trabalhadores e cidadãos já existente.

Apesar de o edifício ter sido construído há quase um século, as dimensões da Chilehaus são comparáveis às da Elbphilharmonie. Com uma forma que sugere a de um navio de passageiros, a Chilehaus tornou-se desde logo um marco emblemático de Hamburgo, tendo na altura as suas dimensões monumentais gerado bastante controvérsia.

Protegido a nível nacional como edifício de interesse histórico desde 1983, a construção passou em 2016, juntamente com a Speicherstadt, a integrar a lista do Património Mundial elaborada pela UNESCO. Desse modo, foi declarada a sua importância e significado a nível global. Segundo a descrição oficial feita pelas próprias autoridades de Hamburgo, Sloman "desenvolveu a sua atividade no Chile ao longo de três décadas" e o edifício representa a "expressão da vontade de desenvolvimento económico de Hamburgo". [6]

O edifício conta, em simultâneo, uma história transcontinental que não se encontra patente: constitui um lugar da memória colonial nesta cidade e, enquanto monumento, recorda também os caminhos do extrativismo que conduziram a Hamburgo. A Chilehaus funciona como um símbolo da expansão colonial alemã para lá das fronteiras dos chamados protetorados.

A partir do século XV, a economia dos países da América Latina baseou-se na exploração da vida humana e dos recursos ambientais, tanto em plantações como em minas, que resultaram em produtos cujo aproveitamento e expedição marítima contribuíram, ao longo da história e de um modo determinante, para a prosperidade europeia. Com base nesse modelo económico desenvolveram-se paisagens urbanas com marcas coloniais, que se tornam também visíveis no planeamento urbanístico de Hamburgo.

O motivo do navio, que pode ser encontrado com bastante frequência em Hamburgo na arquitetura dos edifícios e na ornamentação nas fachadas, é uma narrativa lavrada em pedra que, a nível local, apresenta como modelo as famílias detentoras de companhias de navegação e os proprietários de plantações. Enquanto monumento erguido a esta narrativa, a Chilehaus é, pois, um símbolo proeminente de uma certa visão europeia em relação ao modo como o planeta está dividido.

A propósito da história colonial da Chilehaus

A importância do poder marítimo em Hamburgo, que surgiu ao mesmo tempo que o desenvolvimento urbano burguês, criou as condições prévias para a expansão colonial alemã. Ao contrário do que aconteceu com o colonialismo espanhol e francês, no caso do Império Alemão — e posteriormente da Alemanha —, foram com frequência empresários individuais que, de um modo enganador, se perfilaram como pioneiros de supostas viagens de descobrimento. A história da riqueza de Sloman é um exemplo de ocupação, realizada a título privado, de territórios ricos em recursos, da qual resultaram lucros que beneficiaram exclusivamente os países europeus. A rapidez com que, recorrendo a financiamento privado, a construção da Chilehaus pôde ser realizada explica-se através do monopólio comercial de que Sloman desfrutava no respeitante ao salitre extraído do atual Chile.

Utilizado no século XX tanto para a produção de fertilizantes como de pólvora, o salitre, também conhecido como "ouro branco", era um material igualmente importante tanto para a agricultura como para a indústria de armamento. Antes de Sloman ter passado a explorar os recursos no subsolo do deserto do Atacama e de se ter apropriado das jazidas de salitre, o guano servia o mesmo propósito.

Pelicano na fachada da Chilehaus, Hamburgo. Foto: Tania Mancheno. 

Na fachada da Chilehaus encontra-se uma figura em pedra que representa um pelicano. A figura dessa ave pode ser utilizada para contar a história do guano, ou seja, das muitas toneladas de excrementos de aves que, no século XIX, com extrema regularidade, foram transportadas em navios, das ilhas ao longo da costa do Pacífico — pertencentes ao território do atual Chile, Peru e Equador — para a Europa e Hamburgo. No entanto, a magnitude do comércio desse resíduo natural, bem como a rapidez com que este se processou, levou a que rapidamente o guano existente se esgotasse. Os ciclos naturais foram interrompidos, já que as necessárias fases de recuperação não foram respeitadas, e os navios europeus deixaram de conseguir recolher excrementos de aves em quantidade suficiente. Através do comércio de salitre, Sloman e a sua companhia de navegação conseguiram dar resposta à voracidade de um mercado que, à falta de guano, pôde assim ser satisfeito: paradoxalmente, qualquer dessas matérias-primas servia em simultâneo tanto para melhorar a produção de alimentos para os seres humanos como para os matar.

Dos nomes e da sua origem colonial

Tanto no seu nome como na forma de navio assumida pelo edifício, a Chilehaus remete para o comércio colonial do salitre extraído de minas no deserto do Atacama. Essa matéria-prima constituiu a principal fonte da fortuna acumulada por Sloman e deu também origem a uma parte importante da riqueza da cidade hanseática, uma vez que o porto de Hamburgo se tornou o principal ponto de distribuição do nitrato de sódio de que o Chile foi despojado.

Tal como atualmente a UNESCO o descreve num texto com carácter fragmentário, na altura em que Sloman construiu o edifício em Hamburgo não tinha qualquer intenção explícita de criar um lugar de memória para o Chile. Não muito longe da Chilehaus — percorrendo as ruas ao longo do canal que separa o centro da cidade da Speicherstadt — encontra-se a Slomanhaus, também ela uma Kontorhaus, construída anos antes, em 1910, e ampliada por Höger aquando da construção da Chilehaus. Também nas imediações da Chilehaus fica a Kornhausbrücke, uma ponte que, em tempos, serviu de entrada para a Speicherstadt e onde ainda hoje se encontra uma estátua de Colombo de grande dimensões.

O deserto do Atacama, um local com paisagens de aspeto lunar e tranquilo — e que tradicionalmente, em resultado das suas dramáticas amplitudes térmicas, permanece desabitado — fica situado no norte do Chile. Esta zona do território foi desde o início evitada pelos colonizadores espanhóis. De acordo com lendas [7], os indivíduos brancos relatavam ficar assustados com as flores do deserto, de um cor de rosa avermelhado, que surgiam de um momento para o outro e numa determinada altura do ano. Comparavam esse milagre a um campo de batalha onde vagueavam as almas das muitas pessoas que haviam matado. Sloman ignorou tais relatos e, tanto de forma simbólica como literal, entrou terra adentro.

Antiga represa — erigida entre 1905 e 1911, no rio Loa, Chile — com uma central hidroelétrica anexa, que alimentava a fábrica de salitre de Sloman, 2005. Crédito: Roberto Araya Barckhahn, Wikimedia Commons.

Foi com precisão que Sloman aplicou os conhecimentos coloniais e as correspondentes estruturas de exploração nas suas minas nas regiões de Taltal e Toco. A fim de evitar a formação de um sentido de comunidade entre os indivíduos escravizados, fez uso sobretudo de trabalhadores masculinos [8] de diferentes regiões do Chile, da Bolívia e do Peru, mas também da China.

Para quem trabalhava nas suas minas — uma das quais se chamava "Buena Esperanza" (Boa Esperança) —, foi planeado todo um sistema de endividamento. Os trabalhadores eram obrigados a comprar os alimentos a preços inflacionados à própria empresa de Sloman. No que respeita ao transporte de salitre, Sloman não pagava impostos nem no Chile, no porto de Tocopilla, nem tão-pouco em Hamburgo. Legislação implementada em Hamburgo em 1900, que desregulava o mercado e legitimou este procedimento, ficou conhecida como "Lex Sloman".

Após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha perdeu para a Inglaterra o monopólio do comércio transatlântico do salitre. Muitos mineiros foram despedidos. Da riqueza adquirida em resultado da escravatura e da exploração ecológica, que foi crescendo juntamente com a procura até ao colapso dos mercados em 1930, pouco mais restou para o Chile para além de desérticas estruturas de betão e aço. [9]

A gigantesca infraestrutura de represamento de água — que Sloman construiu para a produção de eletricidade e fornecimento de água às suas minas no meio do deserto — ainda hoje existe. Em virtude da amnésia colonial chilena, a barragem no rio Loa continua a ser referida como Tranque Sloman (Barragem Sloman).

Tradução: Paulo Rêgo 


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Notas

[1] Kontorhaus é o termo para designar um tipo de edifício de escritórios utilizado por empresas de média e grande dimensão como sede administrativa. O Kontorhausviertel (bairro das Kontorhäuser) de Hamburgo é, na história oral deste lugar, entendido como o local "onde o dinheiro é contado". Até hoje os espaços de escritório existentes na Chilehaus são geridos pela empresa Union Investment Real Estate GmbH e arrendados a diversas outras empresas e lojas de comércio. A única exceção é o Instituto Cervantes, a escola de línguas espanhola, que aí se encontra instalado desde 2009.

[2] Exemplo disso são edifícios como a Geschäftshaus der Handelskammer (um prédio de escritórios ligado à Câmara de Comércio, conhecido como Handelshof), a chamada Rappolthaus, na Mönckebergstraße, uma importante rua comercial, bem como a expansão do edifício-sede da companhia de navegação HAPAG.

[3] Embora Sloman seja recordado em Hamburgo enquanto "comerciante", esta designação não inclui de modo algum qualquer referência à violência e aos crimes — perpetrados tanto contra seres humanos como em relação à própria natureza — que caraterizaram os seus empreendimentos no Chile.

[4] Também no bairro operário de Barmbek, construído por essa mesma altura, se encontram fachadas de tijolo como as da Chilehaus.

[5] Citado a partir do registo áudio acerca da história colonial da Chilehaus (Mancheno 2017) que, no âmbito da série de entrevistas #ReprÆsentationen, a respeito do mapping crítico de lugares de memória coloniais alemães, foi publicado no blog do Centro de Investigação "Legado (pós-)colonial de Hamburgo".

[6] Citado a partir da placa instalada pelas autoridades municipais, que foi afixada na fachada sul da Chilehaus. O texto encontra-se também no artigo da Wikipedia alemã dedicado ao edifício.

[7] A lenda é relatada em As Rosas do Atacama, um livro de contos de Luis Sepúlveda, de 2000. Atualmente, a lenda é relatada como sendo as almas de alemães que vagueiam pelo deserto, enlutadas pelas minas de salitre (salitreras) que perderam.

[8] Após um censo realizado no ano de 1921 na Pampa Salitrera, a região no norte do Chile onde se situam as minas de salitre, concluiu-se que viviam aí três vezes mais homens do que mulheres. As mulheres não trabalhavam nas minas, em vez disso, desempenhavam funções domésticas, alimentar e educar as crianças.

[9] Material fotográfico de arquivo, que representa as minas e os edifícios administrativos (oficinas) mandados construir por Sloman no Chile, tanto na atualidade como na altura em que estavam em atividade, foram colocados online no âmbito do projeto virtual Memoria Chilena, levado a cabo pela Biblioteca Nacional do Chile.

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Bibliografia

Lubitz, Jan: "Von der Kaufmannsstadt zur Handelsmetropole – Entwicklung des Hamburger Kontorhauses von 1886–1914" ["Da cidade dos comerciantes à metrópole comercial – A evolução da Kontorhaus de Hamburgo entre 1886-1914"], in ICOMOS – Hefte des Deutschen Nationalkomitees LV [Cadernos do Comité Nacional Alemão], 1/2012, pág. 206-214.

Mancheno, Tania (2017), Audiospur zur Kolonialgeschichte des Chilehauses [Registo áudio a propósito da história colonial da Chilehaus]. Theater der Welt, Hamburgo, 2017, link consultado a 06/05/2021: https://kolonialismus.blogs.uni-hamburg.de/2020/12/04/15-repraesentationen-eine-audio-spur-zur-kolonialgeschichte-des-chilehaus/

Memoria Chilena (2018), La vida cotidiana en la pampa salitrera (1830-1930), link consultado a 06/05/2021: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-3548.html

Sepúlveda, Luis: As rosas de Atacama, Porto Editora, Porto, 2011.

Segovia Arévalo, Wilma: "LA CHILE HAUS. Leyenda Popular en Homenaje a la ‘Chile Haus’ Patrimonio de la Humanidad", in: Pampa Salitrera 2015, link consultado a 06/05/2021: https://pampasalitrera.cl/la-chile-haus

Seemann, Agnes (2017), "Das Chilehaus: Architektur & Geschichte [A Chilehaus: Arquitetura & História]", link consultado a 06/05/2021: https://www.chilehaus.de/de/Das-Gebaeude.html

UNESCO (2005), Humberstone and Santa Laura Saltpeter Works, link consultado a 06/05/2021: https://whc.unesco.org/en/list/1178/

Última edição em: 23/11/2024 11:40:06