“Cinco da matina
Já todos caminham pr’ó mesmo enredo
Porque nos subúrbios
O sol levanta-se sempre mais cedo
É um povo escravizado nesta sociedade de extremos
Trabalham duas vezes mais e ganham duas vezes menos"
Valete, "Subúrbios", Serviço Público, 2006[1]
1. Introdução: 'des-cobrir' o CC Colombo
Lisboa tem dois centros comerciais que foram dedicados aos ‘descobrimentos’: um chama-se Vasco da Gama e o outro Colombo. Neste artigo, debruço-me sobre o CC Colombo, que está localizado no bairro do Colégio Militar, na freguesia de Carnide, no município de Lisboa. No Colombo, inaugurado a 15 de setembro de 1997, a sua arquitetura e decoração foram inspiradas na época dos descobrimentos - portugueses e não só. Através de uma breve exploração da sua história e contexto envolvente, pretendo memorializar o Colombo através dos fluxos humanos e imagens que neste espaço convergem para refletir melhor sobre a relação Lisboa e colonialidade. Isto porque o Colombo, um centro comercial que tem a sua própria estação de metro (Colégio Militar/Luz), um terminal de autorcarros e um anel rodoviário adjacente, junta consumidores, trabalhadores e viajantes de várias latitudes que são inconscientemente permeados por interpretações artísticas - e em parte problématicas - de um passado ao mesmo tempo glorioso e doloroso. Apesar das evidências deste decor - que consiste em pisos embutidos, murais de azulejos, bustos escultados, objetos pendurados e pormenores arquiteturais - a grande maioria dos passantes não lhe presta a devida atenção, nem verbaliza ou problematiza os discursos conflitantes que estão no ar. Ao mapear as territorialidades coloniais e inquietudes pós-coloniais deste singular 'lugar de memória' onde a disputa de identidade se coloca de modo implícito e escondido, pretendo "questionar estruturas hegemónicas mediante um tipo diferente de cartografia", para "descolonizar a cidade" tal como se propõe o projeto Remapping Memories Lisboa. Começando pela construção do CC Colombo e o zeitgeist aquando da sua inauguração, passo pela iconografia visual dos objetos, ruas e praças do Centro, e recolhendo vivências através de notícias online, analiso as relações raciais e sociais deste lugar, evidenciando múltiplos e variados trânsitos pós-coloniais que permeiam trabalho, consumo e lazer[2].
2. Construção e inauguração
O Centro Comercial Colombo é um dos muitos espaços comerciais desenhados pelo arquiteto José Quintela da Fonseca (falecido em 15 de julho de 2020 aos 73 anos)[3]. Está edificado perto da avenida Lusíada e da Segunda Circular; o terminal de autocarros junto ao edifício e a estação de metropolitano do Colégio Militar/Luz (construído em 1988) permitem um fácil acesso aos visitantes[4]. O Colombo tem uma área bruta locável com cerca de 338 lojas e 6.326 lugares para estacionameno, tornando-se o maior centro comercial da Península Ibérica em número total de lojas[5].
(fontes das imagens aqui e aqui)
Antes da construção, o terreno onde o Colombo foi construído era um bairro de lata de ciganos[6]. A 29 de dezembro de 1989, foi celebrado entre o município e a SOPASA, S.A., que hoje corresponde à Centro Colombo - Centro Comercial, S.A., a escritura de "doação, permuta e compra e venda de terrenos para a construção do empreendimento imobiliário denominado Centro Colombo"[7]. O projeto envolvia a construção de um centro comercial, de duas torres de escritórios e de parques de estacionamento. Paralelamente, foram feitas intervenções de infraestrutura rodoviária para assegurar ligações diretas ao local. Durante os quase três anos de construção, quatro operários morreram. O governo português apoiou a construção e o grupo Sonae teria gasto 700 milhões de contos.
O CC Colombo foi inaugurado a 15 de Setembro de 1997 por Jorge Sampaio, Presidente da República, Belmiro de Azevedo, Presidente do grupo Sonae, e João Soares, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (e filho do ex-Presidente da República Mário Soares). Aqui. O evento, que contou com 7.000 convidados especiais, foi televisionado por jornalistas das principais redes televisivas do país. No caso da SIC, o relato foi o seguinte[8]:
"Uma cidade dentro da cidade, a epoca dos descobrimentos serviu de inspiração para o Colombo. Um edificio de 3 andares onde tudo é em grande, duas praças interiores, uma delas com 50 metros de diametro, repuxos, palmeiras e também - é natural - gigantescas mapas quinhentistas desenhadas no chão".
(capturas de vídeo da abertura do Colombo)
O nome do centro é uma homenagem a Cristóvão Colombo (1451-1506), navegador e explorador genovense/italiano, responsável por liderar a frota que alcançou o continente americano em 12 de outubro de 1492[9]. Mas porque é que os responsáveis terão escolhido dedicar o maior centro comercial português a Colombo, comunalmente identificado como um italiano de Génova, e homenageado com estátuas em Barcelona e vários outros lugares no mundo[10] - e não a qualquer outro navegante comprovadamente português? Porque, há quem queira recordar as suas ligações biográficas a Portugal, e pelo menos para alguns estudiosos, Colombo era português[11].
Importa salientar que vários eventos institucionais com retóricas semelhantes de evocação à época quinhentista dos 'descobrimentos' ocorreram em Lisboa de 1996 a 1999, involvendo com os mesmos agentes políticos e empresariais. Por exemplo, o presidente Jorge Sampaio marcou presença na criação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) a 17 de julho de 1996, em Belém (Lisboa)[12]; na inauguração do CC Colombo a 15 de setembro de 1997; na abertura da Exposição Mundial de Lisboa (Expo’98) a 22 de maio de 1998; e na inauguração do CC Vasco da Gama a 21 de abril de 1999.
Fonte da imagem (com Jorge Sampaio e António Guterres ao meio)
Na retórica oficial que acompanhou estes momentos, é possível distinguir elementos discursivos consistentes que apontam para a história marítima-colonial de Portugal. Por exemplo, no caso da CPLP, no seu site institucional consta que:
"Os laços entre os povos que habitam os territórios que integram hoje a CPLP são muito antigos e foram tecidos pela língua portuguesa ao longo de mais de cinco séculos de história. [...] Inicialmente uma língua de navegadores, mercadores e missionários, hoje língua oficial dos oito Estados-membros da Comunidade, o Português é actualmente o património comum de cerca de 240 milhões de pessoas no mundo, a quinta mais falada no mundo"[13].
Dois anos após a fundação da CPLP (e meio ano depois da inauguração do CC Colombo), o governo português organizou a Expo’98, cujo tema foi ‘Os oceanos: um património para o futuro’, representada por uma bandeira semelhante a um oceano no seu logotipo. A Expo’98 - que decorreu de 22 de maio de 1998 a 30 de setembro de 1998, e que recebeu cerca de 11 milhões de visitantes em 132 dias - teve o propósito de comemorar os 500 anos dos Descobrimentos Portugueses, tal como emanece do discurso de abertura do presidente Jorge Sampaio:
"Portugal fez do mar a via para se encontrar consigo, com os outros, com o Mundo. Tem, por isso, muita honra e muita alegria em acolher este grande acontecimento cultural, científico e humano, de dimensão planetária, que recebe o seu sentido do fundo dos tempos e o projeta no futuro"[14].
Em 21 de abril de 1999, Sampaio inauguraria o CC Vasco da Gama no recinto da Expo ’98, dedicado ao navegador português Vasco da Gama (1469-1524). Assim, em menos de 5 anos, o presidente estimulou vários eventos políticos e comerciais dedicados aos descobrimentos portugueses e aos navegadores envolvidos, particularmente Cristóvão Colombo e Vasco da Gama[15].
3. Iconografia dos descobrimentos: territorialidades coloniais
A minha primeira visita ao CC Colombo foi em 2008, no outono, a convite de um amigo italiano que estava de Erasmus em Lisboa e que continuaria para o Brasil. Fiquei espantado com a enorme cascata de água ao lado das escadas rolantes e os seus peixes voadores que, entretanto, despareceram. Outro elemento que deixou marcas na minha memória foi o globo gigante com cartografia original debaixo de um modelo de nau pendurado (o globo entretanto também desapareceu). Só depois, ao longo dos anos e durante as múltiplas visitas que seguiam, fui me dando conta de que as praças e ruas no interior do centro tinham nomes alusivos à época quinhentista, tais como Avenida dos Descobrimentos e praça Trópico de Câncer[16].
Olhando além das montras, revelou-se gradualmente um décor tropical de pisos embutidos, murais de azulejos, bustos esculpidos, objetos pendurados e pormenores arquiteturais. Nesta seção do artigo, apresento exemplos visuais das principais-categorias que apelam à imaginação:
(Fonte das imagens: o autor)
a) ruas com referências coloniais e/ao novo mundo (Praça Trópico de Câncer, Praça do Novo Mundo, Rua das Índias, Rua da Guadalupe, Rua das Caraíbas, Rua de San Salvador, Rua Nau Santa Clara, Avenida dos Descobrimento, Praça dos Navegantes;
b) animais tropicais (pássaros, peixes-voadores e outros, tartarugas);
c) sereias e frutas tropicais;
d) vários mapas do mundo, cartografias marítimas e navios (na entrada do metro e na segunda praça alimentar), incluindo um enorme globo colonial (que entretanto foi substituído por outro transparente) debaixo de um modelo de nau pendurado;
e) emblemas embutidos referentes aos continentes e denominações geográficas diversas (alguns são de lugares que não foram percorridos por Colombo mas sim pelos navegadores): Américas, África, Índia, Rota das Índias, Porta do Ocidente, Porta do Oriente, Praça do Novo Mundo, Feira das Diversões, Praça dos Navegantes, e.o.
f) uma rosa de vento e calçada portuguesa representando o sopro do vento nas ondas do mar em vários corredores do Centro;
g) um navegador com astrolábio e um céu noturno cheio de estrelas de navegação por cima da praça alimentar principal;
h) uma praça com bustos de navegadores (Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Gonçalo Velho Cabral, Bartolomeu Dias, Gil Eanes, João Gonçalves Zarco), também presentes em cima da entrada dos elevadores;
e i) um espaço infantil que relembra os mostros marinhos da 'grande travessia' e um posto/masto nau para ver terra a vista;
j) a secção infantil dos livros em FNAC Colombo, entitulado “Um mundo de descobertas”, o que demonstra, a meu ver, como (algumas) lojas se adequaram ao tema do CC Colombo ou, pelo menos, lhe conferiram legitimidade.
No mesmo sentido, e de volta ao mundo dos adultos, sempre pensei que até o nome do hipermercado Continente (como o CC, também pertencente a Sonae Sierra), tivesse de algum modo implicado um pensamento marítimo - de ilhas, marinheiros, viagens no mar, de quem depois pudesse 'voltar para o continente” - presumivelmente a Europa, mas num segundo nivel, e dada a temática deste centro comercial em particular, o continente americano, africano e asiático. Porém, sem referência direta às pessoas colonizadas e às populações coloniais; não obstante, são os seus descendentes que hoje em larga medida 'servem' quem passe pelo Colombo em certas lojas, restaurantes e serviços, dado empírico que importa contextualizar e esclarecer.
4. Trânsitos pós-coloniais entre trabalho, consumo e lazer
No site do CC Colombo lê-se o seguinte texto generalista: “A par [de uma] experiência única de compras e de lazer que oferece aos seus clientes, o Centro Colombo assume a responsabilidade de dar um contributo positivo para um mundo mais sustentável, trabalhando ativamente para um desempenho excecional nas áreas ambiental e social". Para este artigo, urge contextualizar melhor a relação do Colombo vis-à-vis às comunidades envolventes, desde a construção da obra, a sua exploração (trabalho precário) e a sua sociabilização. Isto porque, são principalmente africanos/afrodescendentes, brasileiros, indianos e asiáticos que trabalham nas grandes lojas, nos restaurantes e na limpeza deste grande centro comercial na antiga capital colonial.
CC Colombo está localizado na freguesia de Carnide (município de Lisboa), mas está quase em Benfica, município vizinho este que fica literalmente do outro lado da rua. A rotunda das Portas de Benfica - a um pouco mais de 2 kms do CC Colombo - é um marco emblemático que ajuda a contextualizar a relação desta zona na grande Lisboa com o seu passado colonial, tal como explica Eduardo Ascensão:
"Esses bairros foram construídos por imigrantes africanos em Lisboa, que ajudaram a construir o Portugal democrático e moderno dos anos 80 e 90, muitas vezes a partir de uma condição de subalternidade, de enorme pobreza, com os seus descendentes nascidos em Portugal, que de cá nunca tinham saído, a terem um bilhete de identidade diferente, azul, enfim, um contexto de grande desigualdade."
Segundo o autor, nestes bairros, “Lisboa pós-imperial reproduziu a condição urbana colonial", de maneira ‘grotesca’, "no que respeita à falta de acesso a infra- estruturas” e.o. (ibid.). Não será por isso de surpreender que as populações residentes foram instrumentalizadas no funcionamento diário do CC Colombo, depois de o terem ajudado a construir. Primark, Continente, MacDonalds e os demais restaurantes de ambas as praças alimentares, as senhoras de limpeza e os seguranças: em 2008 já seriam mais de cinco mil os funcionários do comércio existente no ‘mais simbólico’ centro comercial do país:
“Trabalham por turnos, recebem no máximo 500 euros por mês, têm pouco tempo para estudar e acabam por fazer do Colombo a sua casa. Passam lá o dia, fazem lá todas as compras. Uma relação de dependência e de 'amor-ódio'”, relatava um artigo no Diário de Notícias. Assim, deu lugar a um tipo de racialização do trabalho, tal como transparece de uma artigo da Plataforma Gueto de novembro de 2014.
"Colombo, ‘descobridor’ de terras povoadas, afinal repete o que a Plataforma Gueto já tinha denunciado no Centro Comercial Vasco da Gama: a nossa quase impercetível presença no setor comercial é mais concentrada na área da restauração, com mais de metade do número de mulheres e homens negros contabilizados em todo o centro comercial – 76 trabalhadores. Da mesma forma como já verificado no centro Comercial Vasco da Gama, na área da restauração o número de mulheres negras trabalhadoras é também mais que o dobro do número de homens negros a trabalhar – 52 mulheres negras e 24 homens negros"[17].
Segundo a mesma fonte, cuja repórter passou um dia no CC Colombo, não havia “nenhuma negra ou negro a trabalhar neste período do dia nos setores das óticas, dos concertos rápidos, das fotografias e fotocópias, do lazer, tempos livres, cultura, música, livrarias, tabacarias e press center e apenas 1 homem negro no setor bancário” (ibid.). Assim, descobriu que a “política de contratação dos centros comerciais é consentânea com a sociedade portuguesa capitalista e racista que exerce, para seu enriquecimento, poderes de dominação e de exploração sobre negros e negras” (ibid.). Isto ficou patente de uma entrevista feita com alguns do tais trabalhadores anónimos em 2022, tais como esta senhora de limpeza:
"Sozinha repete uma rotina com mais de duas décadas. Trabalha para a empresa AMG no Colombo e diz que ali fazem um pouco de tudo: recolher tabuleiros, limpar o chão, lavar as casas de banho. Denuncia a forma como são tratadas pelas supervisoras. “Elas gritam com a gente. A voz da chefe quando vem falar connosco fica alterada como se fossemos crianças e às vezes também temos de nos alterar”, confessa. A maioria das trabalhadoras são mulheres estrangeiras. “Aproveitam-se do facto de sermos imigrantes. Há poucas brancas porque não aguentam. Nós aguentamos porque temos despesas para pagar. São muitas horas e horários complicados”, explica no jornal da Voz do Operário.
Por isso, a Plataforma Gueto organizou uma marcha com as as palavras de ordem 'trabalho e racismo é mais colonialismo' (ibid.).
Além da racialização do trabalho e o racismo para com estes trabalhadores de cor diferente, foram também constatadas atitudes racistas para com os jovens-consumidores que vivem nos bairros periféricos de Lisboa. Segundo o ex-deputado Hélder Amaral, num artigo de fevereiro de 2022,
"Se tentam entrar cinco pretos no Centro Comercial Colombo ou no Vasco da Gama, são barrados. Já aconteceu [ao atleta português de origem cabo-verdiana] Nélson Évora. Não queremos mostrar, não sei se por causa do turismo. É uma espécie de "são pretos, há assaltos" e isso é o discurso do Chega. Se o [famoso jogador de futebol de origem moçambicana, falecido em 2014] Eusébio fosse a uma discoteca com quatro pessoas da família não o deixavam entrar. Se isso não é racismo é o quê[18]?
De modo semelhante, em julho de 2020, o luso-cubano Pedro Pablo Pichardo, recordista nacional do triplo salto abordou o tema racismo em entrevista ao jornal ‘O Benfica’, relatando uma situação que se passou consigo no CC Colombo:
"Há pouco tempo, estava no Centro Comercial Colombo e ia a descer as escadas juntamente com uma senhora. Essa senhora quando me viu, ficou muito surpreendida e assustada, sem motivo aparente e sem eu fazer nada que justificasse. Não foi nada de especial, mas notei que se assustou por estarmos ali sozinhos"[19].
No mesmo âmbito, importa relembrar o meet (um encontro de jovens combinado através das redes sociais) no Centro Comercial Colombo, convocado uma semana depois dos episódios de violência registados num meet anterior no CC Vasco da Gama, no verão de 2014. “Mais do que um flop, havia uma clara intenção dos organizadores em confundir a polícia e os órgãos de comunicação social, responsáveis pelo discurso criminalizador dos dias anteriores”[20]. Segundo Otavio Raposo, que estudou o fenómeno, "as narrativas de medo geradas a partir dos meets tiveram como foco os jovens negros, numa abordagem pouco séria que contribuiu para fomentar a sensação de insegurança e os sentimentos racistas em Portugal. (ibid.)" E como resultado desta mesma narrativa, aquando do meet no CC Colombo “dezenas de jornalistas e um amplo contingente policial compareceram, mas nenhum participante” como maneira de fugir à polícia. Meio ano mais tarde, em fevereiro de 2015, outro encontro entre cerca de 300 jovens – muitos deles menores – no Colombo acabara em rixa, com agressões violentas entre dois grupos rivais e a fecha temporária de algumas lojas"[21].
Outras intervenções policiais no CC Colombo incluem tiroteios, facadas e roubo, a maioria com sujeitos racializados. Por exemplo, em 25 de junho de 2011, houve notícia de um tiroteio no (já não existente) espaço Funcenter, onde um grupo de etnia cigana terá se envolvido em confrontos utilizando armas de fogo, resultando em quatro feridos graves[22]. Em 12 de março de 2017, a PSP identificou três indivíduos que terão esfaqueado um jovem no interior do CC, porém sem divulgar a sua origem étnica[23]. Um último exemplo remonta a 1 de maio de 2023, foi colocada uma filmagem no antigo Twitter com o título "São os seus costumes, temos que respeitar", mostrando uma intervenção policial a um consumidor de cor negra, filmado por outro cliente com sotaque brasileiro, na entrada da loja de roupa Primark no CC Colombo[24].
5. Argumentação: inquietudes e possibilidades
Como vimos, no CC Colombo consumidores, trabalhadores e visitantes são inconscientemente permeados por imagens que evocam a época quinhentista das descobertas. A omnipresença súbtil de mapas, cartografias e ruas que remetem tanto ao 'novo mundo' quanto às travessias oceânicas para lá chegar - animais exóticos, monstros marinhos, sereias, navios, astrolábio e firmamento global - invoca uma falsa pacificidade histórica, como se os descobrimentos tivessem sido algo natural, amistoso e científico, mas não ou nem tanto biológico e cultural. E embora o CC Colombo seja apenas uma representação - ou réplica - deste passado, merece e deve ser encarado como um espaço de patrimómio na medida em que distorce e faz reimaginar o início das relações sociais, culturais, políticas e económicas no atual mundo lusófono, do qual Portugal faz parte. Neste sentido, de facto, o CC Colombo tem uma relação estreita com as dimensões da colonialidade e pós-colonialidade na antiga metrópole do império português. Numa curta metareflexão teórica, pretendo agora entender melhor as suas inquietudes e possibilidades como lugar verdadeiramente póscolonial e, talvez um dia, decolonial.
Em primeiro lugar, junto com Jonas Prinzleve (2022: 24), escrevo “pós-colonial” com um hífen quando me refiro ao período histórico após o colonialismo. Por outro, “póscolonial” sem hífen refere-se às perspetivas críticas, tanto populares e académicas, que se envolvem com os legados do colonialismo, sejam eles iconográficos (representações visuais) ou humanos (trabalhadores e consumidores).
Tal como argumenta Barbara Kirshenblatt-Gimblett (2023: 348), embora o património seja comumente entendido como um legado do passado, a gestão do património diz respeito ao presente e futuro não só dos bens patrimoniais, mas também àqueles que são responsáveis por eles. Por isso, uma análise crítica do património [critical heritage] do CC Colombo deve conseguir distinguir e destrincar sentimento (“significados e valores tal como são ativamente vividos e sentidos”) e ideologia (“crenças formalmente mantidas e sistemáticas”), observando que eles estão, naturalmente, inter-relacionados na prática (2023: 354). Memorializar o espaço público-privado (delimitado) do Colombo implica mapear fricções patentes desde a sua inauguração, entre iconografia e população - portugueses e aqueles encarados como não- portugueses - que permite a transmissão implícita da narrativa histórica cultural dos descobrimentos, a qual Kirshenblatt-Gimblett certamente poderia entender como "estruturas mutáveis de sentimento e a sua localização histórica" ou, em resumo, “elementos afectivos da consciência” (ibid.).
De fato, cf. argumenta também Prinzleve, os modos afetivos de encontro da herança (neo)colonial nas paisagens pós-imperiais são múltiplos e dependem da orientação e posicionamento do encontro (2022:24). Neste sentido, um passeio pelo Colombo será vivido diferentemente por um português do que por um cidadão brasileiro, angolano ou caboverdiano, quando estes se veêm confrontados com traumas e tabus de um passado colonial pouco abordado e mal digerido, e do qual seus antepassados ou, pelo menos, as estruturas psicológicas fizeram parte. Neste sentido, para um observador atento, CC Colombo é um holograma do passado, um museu ao ar livre, disfarçado de lugar de lazer a-crítico, cujo impressão casa bastante bem com o seguinte relato na HafenCity em Hamburgo, na Alemanha, também este um lugar de glorificação de um passado marítimo-colonial:
"Andar pelas ruas de Hamburgo faz-me sentir infeliz. Passo pela Vespucci e pelo Columbus Haus em direção ao Kaiserkai, Vasco-da-Gama-Platz, Magellan-Terrassen, Marco-Polo-Terrassen. [...] Penso nas 'revoltas reprimidas' que foram genocídios, nos combatentes que defenderam as suas casas e vidas [...]. Penso nos milhões de pessoas assassinadas, linchadas, escravizadas, exploradas, violadas, raptadas, e vejo fachadas magníficas, residências recém-construídas, novas placas de identificação. Cada passo por estas ruas é um pontapé na memória cultural, uma renovação do trauma coletivo. Nossas histórias não contam. Somos invisíveis quando um conquistador é estilizado como um explorador. Não contamos quando um agente de escravização e exploração se torna apenas um 'marítimo'" (ibid.).
Tal como a celebração da memória imperial na HafenCity, a omnipresença visual dos descobrimentos no CC Colombo em Lisboa reproduz, pelo menos simbolicamente, a violência e memória pública colonial, gerando sentimentos de exclusão e despertencimento. Neste sentido, Elsa Peralta (2011, 2018) e Leonor Rosas (2022) indicaram que na arena pública não houve discussão crítica e debate sobre as questões do império e do colonialismo: o imaginário coletivo da nação portuguesa em grande parte ainda se orgulha da história dos descobrimentos e da expansão, percebida pelas jovens gerações principalmente como uma aventura, um encontro entre diferentes povos. Segundo Peralta (2011: 210), a "vulgata lusotropical" é marcadamente "antirracista e humanista" na sua orientação, e proporciona um "enquadramento muito positivo" para a experiência colonial portuguesa:
"Aqui [,] as realidades aparentemente secundárias do colonialismo, da escravatura, do comércio de escravos, das guerras coloniais, tornam-se termos ausentes e contextos invisíveis. Em seu lugar, [a] expansão portuguesa é representada como civilizacional, enquanto a cultura portuguesa assim ficcionalizada torna-se uma cultura crioula que define simbolicamente Portugal como uma nação europeia transcontinental" (Peralta 2011: 211).
Nas palavras de Miguel Vale de Almeida no seu artigo "Otherselves", Portugal vive em condições de "amnésia cultural e histórica", por um lado, e em "condições de hipermemória cultural e histórica", por outro. Segundo Almeida, esta conjunção específica de amnésia e memória poderia ser chamada de 'anestesia' – e o seu resultado é a recusa em reconhecer o racismo:
"Aconteceu, antes, que a dificuldade em impor um verdadeiro processo de alteridade equivalia a uma dificuldade em criar as condições para a empatia, o reconhecimento ou a imaginação de um Outro-Eu. A minha preocupação passou a ser a imaginação de Portugal hoje - no período democrático, da União Europeia, pós-colonial. Compreender como uma narrativa de séculos é comprimida no imaginário coletivo para produzir a noção de uma cultura e de um Estado humanista e universalista que criou um mundo miscigenado e hibridizado, onde distinções raciais e de classe claras não são detectáveis, ao contrário do que são vistos como colonialismos mais cruéis, formações raciais e de classe. É uma identidade sem política, isto é, onde a política não deveria acontecer – uma enorme realidade oculta e reprimida pelo superego nacional" (Almeida 2016: 23).
Na mesma linha de pensamento, o CC Colombo parece constituir uma contradição em ação, no sentido que utiliza a bússola dos navegadores como tropo de marketing para perpetrar silenciosamente certas marcas históricas identidade nacional. De acordo com o pensamento da Elsa Peralta sobre outros espaços lisboetas - tanto em museus quanto ao ar livre - "por vezes de forma explícita e por outras de forma latente, através de formas mnemónicas inertes e/ou não declaradas", a memória do império colonial português guia a imaginação deste Centro Comercial como lente para a cidade de Lisboa enquanto antiga capital do império agora concebida como cidade global pós-colonial (Peralta 2018: sp). Assim, o CC Colombo permite descontrair o sentido crítico do cenário envolvente ao deixar o consumidor fazer as suas compras no cenário semi-tropical dos descobrimentos. Por conseguinte, pode ser encarado como um espaço semipúblico de cunho cultural de 'encobrimentos', que merece ser explicado e precisa ser desconstruído. Parafraseando Peralta (2018: sp), é urgente analisar a recepção deste tipo de produtos da cultura pública por parte dos seus usuários e públicos, já que os mesmos transmitem uma subjectividade pós-imperial através de práticas do quotidiano não institucionalizadas.
De acordo com Prinzleve (2022), argumento que se torna imprescendível quebrar reificações de noções binárias sobre que histórias e vidas contam (ou não), sendo necessário iniciar processos de reavaliação por via de cultura e política descolonial, mudando o foco para os trânsitos pós-coloniais das comunidades afetadas, e redistribuindo-lhe voz e agência ativa. Claro, um centro comercial não é um centro cultural, mas poderia e deveria mostrar o devido respeito por quem foi injustiçado no passado. Se não for através da iconografia, então através das ações inclusivas e de visibilização para que quem lá passa se sinta em casa. Especialmente dado que, na atual vida cultural de intelectuais afro-portugueses e brasileiros em Lisboa (e não só), está em curso uma promoção gradual - mas crescente - de tolerância e de mistura, que parece estar permitir uma superação geracional de feridas e tabus coloniais, por um lado e, por outro, um fortalecimento e resignificação dos laços afetivos culturais nos espaços intersticiais que perduraram entre Portugal e as suas ex-colónias.
É evidente que um centro comercial é um espaço ainda pouco comum para abordagens decoloniais. Porém, estou convencido de que também pode encurtar este caminho e acelerar o entendimento para que uma mudança de paradigma possa ter lugar. Enquanto este movimento de awareness acontece fora das suas portas, o CC Colombo poderia ganhar credibilidade com eventos culturais ou de ação cívica que acolhessem as populações que passam diariamente por ele - para não ser uma ilha mas sim uma base de igualdade e de respeito dentro da região onde sua bandeira foi (im)plantada. Por exemplo, no seu pátio central, o Colombo já recebeu várias exposições de música e de arte (por exemplo, 'Bem-Vinda Sejas, Amália' - uma mostra organizada no âmbito da celebração do centenário do nascimento da fadista Amália Rodrigues, ou edições anuais de 'A Arte Chegou ao Colombo'; porquê não uma exposição sobre Amilcar Cabral ou Chico Buarque, ou uma mostra de práticas expressivas do espaço cultural lusófono?
No que diz respeito ao paladar, na praça alimentar, Jango (que se baptizou 'Restaurante de Gastronomia Africana: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S.Tomé e Príncipe) dá o exemplo daquilo que é possível. Pelo menos, como diz o slogan do CC Colombo, que parece representar 3 c's (continentes?) e que se unem na forma de uma corrente (uma referência à escravatura não intencional que acaba por propor uma união póscolonial?): "Tem tudo o que possa imaginar."
6. Referências
Este artigo é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto UIDB/00509/2020.
Notas
Última edição em: 21/11/2024 06:15:18