Belém

© Rui Sérgio Afonso

Belém

A cidade colonial à beira-Tejo

Filipa Lowndes Vicente
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Num mesmo espaço, todos os tempos. Uma história do Portugal colonial exposta num bairro-museu sem as legendas que sugiram aos seus visitantes uma determinada forma de olhar. As narrativas possíveis são múltiplas, mas dependem mais de quem observa do que de quem coordena, dirige, concebe as diferentes secções ou edifícios deste museu de rua. Uns visitantes caminharão por ali como se deambulassem pela Exposição do Mundo Português, outros descolonizarão com o seu olhar aquilo que observam.

Belém, num dos limites da cidade de Lisboa, quando o rio se começa a lançar ao mar, é o “complexo mnemónico” das “referências sacralizadas da nação”. Foi o que Jorge Freitas Branco lhe chamou. Um “complexo de memória”, segundo Elsa Peralta, no seu trabalho sobre os modos como essa mesma zona de Lisboa congrega no espaço público – de modo ímpar – a memória do Império Colonial Português. 

Num mesmo espaço, todos os tempos. Uma história do Portugal colonial exposta num bairro-museu sem as legendas que sugiram aos visitantes uma determinada forma de olhar. As narrativas possíveis são múltiplas, mas dependem mais de quem observa do que de quem coordena, dirige, concebe as diferentes secções/edifícios deste museu de rua. Uns visitantes caminharão por ali como se deambulassem pela Exposição do Mundo Português, outros descolonizarão com o seu olhar aquilo que observam. Inês Beleza Barreiros argumenta, e bem, que o Museu dos Descobrimentos já existe [1]. Ele está ali, de pedra e cal, à vista de todos e com todos as suas peças de museu a “walking distance”, a expressão intraduzível que quer apenas dizer “a uma distância passível de ser caminhada”.    

Mas de que é que estamos a falar? Falamos de uma lista significativa de edifícios e monumentos. Construídos em diversas épocas, do século XVI até hoje, encontram-se perto uns dos outros e disputam entre si a primazia simbólica e ideológica da nação-império ou simplesmente da nação-poder. Sem ordem alfabética ou qualquer outro tipo de critério: o Mosteiro dos Jerónimos e o Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, dentro do Mosteiro; o Museu da Marinha e o Planetário, ao seu lado, o Padrão dos Descobrimentos; a Torre de Belém; o Espaço Espelho de Água, criado na Exposição do Mundo Português de 1940 já para comida e espetáculos; o Museu de Arte Popular; o Monumento aos Heróis do Ultramar ao lado do Museu do Combatente, instalado no Forte do Bom Sucesso; o Palácio Nacional de Belém, edifício que passou a residência oficial dos presidentes da República em 1910; o Monumento a Afonso de Albuquerque, à sua frente; o Museu Nacional dos Coches, primeiro no Picadeiro do Palácio Nacional de Belém, agora com direito a casa própria e com arquitetura de assinatura, tal como o CCB e o MAAT, duas instituições culturais da contemporaneidade que são também experiências arquitetónicas que mudaram a paisagem urbana; 

a Estação Fluvial de Belém, mais um resto da Exposição de 1940; a Cordoaria Nacional, onde se produziam as cordas, cabos e velas para os navios e onde, atualmente, enquanto espaço da Câmara Municipal de Lisboa, se fazem todo o tipo de exposições e eventos; o Jardim Botânico Tropical – antes “do Ultramar” - e o seu Palácio dos Condes da Calheta, em tempos o Museu Agrícola Colonial, hoje um edifício da universidade de Lisboa; mais acima, com a vista panorâmica que lhe oferece a elevação na paisagem, Museu Nacional de Etnologia, instituição que nasceu de parto demorado e difícil e teve que reinventar-se à passagem do colonial para o pós-colonial; e no topo da colina, o Palácio Nacional da Ajuda, antigo Paço Real, hoje biblioteca, museu e escritórios onde o Estado instalou a Cultura. 

Poderíamos ainda alargar os horizontes deste perímetro urbano para Leste e para Oeste da linha costeira, respetivamente para o centro da cidade ou para o Oceano Atlântico. Até para o outro lado do rio, a Sul. Aquilo que se vê de Belém acaba por ampliar os seus efeitos alegóricos, como uma caixa de ressonância. A gigantesca estátua do Cristo Rei na outra margem, inaugurada em 1959, mas inspirada ainda na década de 1930 pelo seu homónimo carioca, e a enorme ponte encarnada, sempre presente, à esquerda de quem olha para o Tejo. À direita, para Oeste, poderíamos encontrar dois lugares que também entram em diálogo com Belém. O Primeiro, o Aquário Vasco da Gama, no Dafundo. Com a criação do Oceanário de Lisboa, herança da Exposição Mundial que teve lugar em Lisboa em 1998, conhecida pela EXPO’98, o pequeno museu das espécies marinhas com o nome do navegador tornou-se numa relíquia da história dos museus. Já não pode competir com outro Vasco da Gama mais poderoso, também ele resquício da EXPO’98 – o Centro Comercial Vasco da Gama. O Estádio Nacional, inaugurado em 1944, e palco de desfiles da Mocidade Portuguesa como de jogos do desporto nacional, poderia ser pensado ao lado da Exposição do Mundo Português de 1940. Ambos – exposição efémera e estádio permanente – têm a mão determinante do Engenheiro Duarte Pacheco, aquele que enquanto Ministro das Obras Públicas de Salazar em diferentes momentos conseguiu deixar inúmeras marcas urbanas na cidade do Estado Novo. 

Parte do efeito “Belém” reside precisamente no facto de cada um dos lugares estar sempre em relação visual com os outros. Esses olhares cruzados unificam o espaço e reificam as narrativas históricas que lhe dão sentido. Um dos muitos objetivos dos urbanistas que desenharam a exposição de 1940 foi que o Mosteiro dos Jerónimos voltasse a ver o mar, e para isso foi preciso destruir as edificações de séculos que lhe obstruiam a vista. Hoje, Belém é herdeira e continuadora dessa centralidade das “vistas”. O caminhante-observador tem sempre várias referências no seu campo visual. À individualidade de cada edifício-monumento sobrepõe-se o conjunto, o complexo, a vivência da metáfora de um caminho pela história, em sincronia e diacronia. 

Mosteiro dos Jerónimos © Rui Sérgio Afonso

Em alguns dos edifícios, as possibilidades visuais são enfatizadas pela possibilidade do panorama a “olho de pássaro”. Isto acontece quando o visitante pode subir a um lugar, aberto quase sempre, que lhe permita uma visão panorâmica da paisagem à sua volta. Este dispositivo, desenvolvido sobretudo com o turismo histórico do século XIX – o “vol d’oiseau” das pirâmides egípcias ou das torres das catedrais europeias – está presente em vários lugares de Belém. Dos três museus mais recentes, CCB, Museu dos Coches e MAAT, por ordem de chegada, há sempre a possibilidade de ver o Tejo. Mas onde talvez este exercício – de subir, parar e admirar – se torna mais evidente é no Padrão dos Descobrimentos. Essa é, aliás, a principal razão para lá entrar, como o demonstram as filas. O visitante sobe ao mastro-trampolim para ver o Tejo e a Terra, podendo tornar-se – simbolicamente – parte do grupo de homens que ladeiam, esculpidos, a caravela de pedra.

É também lá de cima que poderá ver melhor o mapa dentro de uma enorme roda dos ventos desenhada na calçada da praça que acolhe o Padrão dos Descobrimentos. Uma cronologia e um mapeamento da “expansão portuguesa” – o espaço e o tempo inscritos na pedra que se observa do alto do Padrão ou por onde se caminha, lá em baixo. É lá que os turistas tiram fotografias a apontar para um lugar no mapa, de onde vêm ou onde estão. O que não está escrito na pedra é que no ano em que a Rosa dos Ventos foi oferecida a Portugal pela África do Sul, quando o país se quis associar às comemorações do Infante em 1960, o Apartheid estava ainda “alive and kicking”. O país que fez da segregação racial política oficial durante décadas pagou uma obra que se instituiu como uma ode ao encontro de culturas.    


Materialidades: por fora e por dentro 

Podemos pensar neste inventário de lugares a partir de diferentes eixos. O do tempo e do espaço, sem dúvida. Mas também o da materialidade. Comecemos por esta ideia de matéria, o corpo por fora e o corpo por dentro, frente e verso, exterior e interior. Algumas das construções em Belém – materialidades edificadas – são sobretudo exteriores: alçado, corte, vistos por fora, elementos na paisagem, protagonistas do panorama da cidade-rio, objetos fotografáveis, representáveis, gravura, poster, postal. A Torre de Belém, por exemplo, o barco de pedra que as obras de aterro prenderam ao cais, ou o Padrão dos Descobrimentos, essa estátua-proa onde se pode entrar.

Outros edifícios, pelo contrário, funcionam mais como contentores de outras materialidades. São aqueles que têm lá dentro arquivos, objetos, documentos, conhecimento. O Arquivo Histórico Ultramarino, o Museu Nacional de Etnologia, ou o Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Outros, ainda, são ambas as coisas, exterior e interior, massa folhada e creme, como um pastel de Belém, aquele que se vende num outro local icónico da portugalidade naquele bairro. Portugalidade essa mais facilmente exportável para Londres ou Nova Iorque, porque a  cultura da comida é sempre mais poderosa do que todas as outras. À porta dos Pastéis de Belém está a fila de pessoas que consegue ser mais longa do que todas as outras. Maior mesmo do que a do Mosteiro onde a “receita secreta” terá sido inventada, seguindo a tradição dos doces conventuais.  

O Mosteiro dos Jerónimos poderia ser o exemplo dessa dupla identidade, exterior e interior. Por fora, é talvez o mais imponente dos edifícios simbólicos de Belém e tem tudo para o merecer, mesmo que este papel seja disputado pela Torre de Belém, uma construção de defesa da Barra iniciada em 1514. Os Jerónimos têm a antiguidade, a associação a um nome maior na genealogia da epopeia, D. Manuel I, e mesmo o estilo artístico que lhe pediu o nome para classificar o portal e não só, o “Manuelino”. A dimensão ajuda, com a sua fachada a acompanhar a linha de costa. Mas por dentro também se prolonga simbolicamente: quer no espaço que faz parte do próprio edifício – como a Igreja ou o Claustro – lugares contemporâneos das cerimónias de Estado ou da Igreja, onde se ouvem sermões, discursos e música ao vivo, e onde se sacralizam os corpos de Vasco da Gama e Camões; quer naquilo que foi lá colocado posteriormente, como o Museu Nacional de Arqueologia, a vincar as origens da nação e a alargar as cronologias da história para datas muito anteriores à do Mosteiro. 

Espaços e tempos: a sincronia e a diacronia

Outra forma de abordarmos Belém poderá ser através das suas dimensões sincrónicas e diacrónicas – termos emprestados da linguística para pensar na evolução de determinada língua, mas muito úteis para se pensar historicamente. Assim, a sincronia pensaria o lugar durante um determinado momento histórico – Belém no século XVI, por exemplo, quando apenas existia o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém e não havia uma continuidade urbana com a cidade de Lisboa. Ou Belém entre 1938 e 1940, quando, apesar da II Guerra Mundial, o governo decidiu avançar com o projeto de fazer uma grande Exposição Histórica naquela zona da cidade. A sincronia faz assim um recorte temporal, analisando diferentes fatores e lugares numa mesma cronologia.

A diacronia, por outro lado, faz um corte transversal, olhando para algo através de uma longa linha de tempo. Neste caso, seria por exemplo pensar nas transformações da zona de Belém do século XVI até hoje. Esta abordagem faz especial sentido porque há inúmeros lugares, edifícios e instituições que já tiveram várias vidas, várias identidades, vários nomes. Alguns nem saíram do papel, mas nem por isso devem ser esquecidos. A história do que se quis fazer e não se fez pode ser tão relevante como aquela que deixou materialidades e presença física. Pensamos naquilo que aconteceu entre 1940 e a década de 1970, quando vários projetos urbanísticos, ambiciosos e radicais, foram equacionados para Belém após o fecho da Exposição do Mundo Português. Se a Exposição já havia mudado radicalmente o lugar – com destruições e construções, umas mais permanentes, a maioria mais temporárias – o pós-exposição provou ser mais conceptual. A vasta maioria das ideias nunca saíram do papel ou da maquete, como o prova uma exposição-catálogo no Padrão dos Descobrimentos - Sombras do Império. Belém: Projetos, Hesitações e Inércia 1941-1972 comissariada por João Paulo Martins e com uma equipa onde está também Pedro Rito Nobre, que escreveu sobre as transformações urbanas de Belém. 

Assim, o grau de investimento que, durante décadas, foi feito a pensar, urbanística e ideologicamente, na zona de Belém é, ele próprio, prova da sua potência simbólica. Entre o pós-guerra e a década de 1970, o resto do mundo tomava o caminho da descolonização. Nos limítrofes de Lisboa, pelo contrário, grandes urbanistas dialogavam com as comissões institucionais e com o próprio Salazar – aqueles que tinham a última palavra sobre os projetos – para ali criar um hino arquitetónico ao Ultramar. A palavra “Ultramar” que iria dar nome a um grande museu ao lado do Mosteiro do Jerónimos ficou nos desenhos urbanísticos. Mas a palavra persiste até hoje num outro espaço de Belém, o Monumento aos Combatentes do Ultramar, ao lado do Museu do Combatente, a evocar a guerra "do ultramar", guerra "colonial" e guerra "de libertação", os diferentes nomes que correspondem aos diferentes lados das barricadas e posições ideológicas perante o conflito armado que, de 1961 a 1975, opôs “Portugal” e as colónias que queriam deixar de o ser. 


1940 e a Exposição do Mundo Português: a consolidação de Belém

Assim, e apesar dos diferentes espaços, monumentos e museus de Belém terem cronologias distintas foi, sem dúvida, com a Exposição do Mundo Português que esta zona se consolidou enquanto lugar de evocação de todas as camadas consideradas relevantes na história nacional, como vários estudos já demonstraram, inclusive um catálogo de uma exposição sobre a Exposição de 1940, que nunca chegou a ser realizada. Não faremos aqui uma comparação com a EXPO’98, e as suas múltiplas narrativas históricas (e imperiais), mas faz sentido pensar nas transformações urbanas que uma e outra exposição trouxeram à cidade. Se por um lado, as exposições universais são, desde o seu modelo oitocentista, oportunidades de renovação urbana, também é certo, por outro lado, que enquanto a zona oriental da cidade, onde foi construída a Exposição de 1998, era uma “página em branco”, a Belém de 1938, quando avançou com o projeto, era um lugar já imbuído de referências indissociáveis da história e identidade visual da cidade. 
Nas primeiras gravuras que circularam com um panorama da cidade de Lisboa vê-se a Torre de S. Vicente de Belém, como era então denominada, e pouco depois da invenção da fotografia, o forte-monumento é objeto da lente de vários fotógrafos. Ainda na década de 1840, José Nunes da Silveira fotografou um fotógrafo ao pé da Torre. A fotografia dentro da fotografia. H. Tisseron fotografou-a entre 1855 e 1865. Em 1862, Joaquim Possidónio da Silva incluirá a Torre na sua publicação “Revista pitoresca e descritiva de Portugal com vistas fotográficas”; Henrique Nunes fotografou-a em 1865 e, em 1873, Francisco Rocchini. O Mosteiro dos Jerónimos também foi logo objeto da nova tecnologia. Antes de 1859 existe uma fotografia de autor desconhecido, como podemos ver no Catálogo da Exposição Tesouros da Fotografia Portuguesa do Século XIX, da autoria de Emília Tavares e de Margarida Medeiros. Também de um desconhecido é um panorama do Mosteiro feito de várias fotografias juntas a dar a ideia da vasta dimensão da fachada. 

Assim, enquanto a EXPO’98 serviu para criar uma nova cidade – passou a viver-se dentro do espaço da Expo ou no Parque das Nações, em Belém, os vestígios da Exposição do Mundo Português de 1940 estão mais no modo como se dominou e mapeou o espaço urbano e a regularização da linha costeira do que propriamente nos edifícios que restaram. Além do Museu de Arte Popular, que ainda não conseguiu criar uma nova identidade, e do Espaço Espelho d’Água, o Padrão dos Descobrimentos é talvez o mais emblemático dos restos – materiais e ideológicos – de 1940. Construído num material efémero, ficou logo destruído, quando uma tempestade assolou Lisboa, uns meses depois do fecho da Exposição de 1940. Muitos anos passaram até se voltar a construir em matéria mais perene. A obra conjunta do arquiteto Cottinelli Telmo e do escultor Leopoldo de Almeida, já em betão e pedra, foi inaugurada noutra data simbólica em 1960, a dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, aquele que lidera o grupo de homens esculpidos em ambos os lados. Um outro vestígio material merece ser mencionado mesmo que escondido entre a vegetação do Jardim Botânico Tropical, numa calçada apropriadamente chamada da “memória”: as representações escultóricas das diferentes etnias do "mundo português" fora do retângulo europeu – parte da poderosa encenação visual colonial de 1940.

Mas a ocasião também motivou a publicação de vários guias turísticos que contribuíram para a invenção do lugar, enquanto entidade autónoma. Encostada a Lisboa, mas para além de Lisboa. Em 1940, Norberto Araújo, o olisipógrafo, escreveu um guia de Lisboa, sob tutela da SPN, e com desenhos de Maria Keil. José Dias Sanches foi mais específico. Em 1940, publicou Belém e arredores através dos tempos, aquela “praia de tradições heróicas" onde se tinha feito “a mais bela reconstituição do passado, concebida até hoje.”


As décadas de 1950-1960: conhecimento colonial no canto do cisne 

Ao contrário dos vários projetos urbanísticos para Belém nas décadas de 1950 e 1960 que nunca foram realizados, há um lugar onde as coisas saíram do papel – o complexo de conhecimento colonial que se foi construindo na Junqueira, rua-bairro adjacente a Belém, e nas traseiras e laterais do Mosteiro dos Jerónimos. Será paradoxal pensar que, enquanto em todo o mundo e também no espaço colonial português, as palavras de ordem eram descolonização, libertação, autodeterminação, na Lisboa metropolitana se erguiam, a olhos vistos, edifícios para preservar, guardar, ensinar, praticar ou mostrar as várias frentes de uma “ciência colonial”. E, mesmo o lugar onde tudo era pensado e decidido. De facto, o Ministério do Ultramar (hoje Ministério da Defesa) foi projetado em 1960, no Restelo, logo acima de Belém. Ali ao lado, também foi criado, por decreto de 1965, o Museu de Etnologia do Ultramar que, na sua versão depois da Revolução de Abril, substituiu a palavra “Ultramar” pela palavra “Nacional”. Mais abaixo, ao lado dos Jerónimos, abriu em 1962 o Museu da Marinha, o museu possível para contar as odes marítimas da nação, depois de décadas de tentativas falhadas para erguer um “Museu do Ultramar”, em tempos coloniais, ou um “Museu dos Descobrimentos”, em tempos pós-coloniais e recentes.

Mais em direção ao centro de Lisboa, na Rua da Junqueira, e logo ali a seguir à Calçada da Boa-Hora onde já existia o Arquivo Histórico Ultramarino, surgiu, em 1958, o Instituto de Higiene e Medicina Tropical e, uma década depois, o projeto do Hospital do Ultramar (hoje Egas Moniz), a ocupar os próprios jardins do Palacete onde está o Arquivo Histórico Ultramarino. Ali perto, num palacete na Rua da Junqueira, instituiu-se a Escola Superior Colonial, de onde deveriam sair os funcionários destinados a integrar a máquina administrativa do império.  

O conhecimento científico colonial passou a ter um bairro: Belém era mais passado, Junqueira presente e futuro. Belém e a Junqueira surgiram, assim, durante este período, não apenas como monumentos e memória, mas como laboratórios orgânicos e vivos de um colonialismo que se queria pragmático e desenvolvimentista, como Cláudia Castelo e outros historiadores têm estudado. A ciência colonial a merecer, finalmente, o investimento e dignidade merecida, mesmo que o canto do cisne fosse ensurdecedor. 

Hoje, persistem todos estes espaços transformados. Nalguns deles, caíram as palavras que os inscreviam no seu contexto histórico. Mas todos continuam a ser não só edifícios e espaços, mas documentos, materiais e objetos para uma história da experiência colonial portuguesa, nas suas relações com o conhecimento, da medicina à botânica, da etnografia à geologia, tal como com a história e memória. Em 2015, o Instituto de Investigação Científica e Tropical foi extinto, mas o projeto Arquivo Científico Tropical  Digital disponibiliza muitas das coleções espalhadas pelos vários edifícios que estavam sob a estrutura do Instituto de Investigação Científica Tropical e agora estão sob a tutela da Universidade de Lisboa – a palavra “tropical” a resolver a pesada herança do Portugal democrático.
Em Belém e nos seus arredores, o passado, o presente e o futuro do conhecimento sobre o império continuam à distância de uma breve caminhada. Podemos ser turistas, ou habitantes locais ou de outros bairros, mas também temos que continuar a ser observadores atentos e a persistir no trabalho de pensamento crítico sobre o lugar.


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Notas

[1] Inês Beleza Barreiros escreveu sobre Belém num texto a ser publicado que “Belém é menos uma “imagem memória” (Peralta, 2017) e mais aquilo que Joaquín Barriendos designou de “imagem-arquivo” (2011), uma imagem que constitui o cerne do arquivo colonial, ou melhor, que é em si o arquivo – e o arquivo em acção. É por isso que tenho defendido que o museu dos “descobrimentos” já existe – em Belém. Bastará estabelecer pontes com outros lugares da cidade, como a Academia das Ciências, a Sociedade de Geografia, o MNAA ou o Parque das Nações para que Lisboa como paisagem colonial seja perceptível enquanto tal. Um exemplo a seguir pode ser o recente projecto que mapeia o legado esclavagista de Salvador da Bahia e os seus lugares de resistência (salvadorescravagista.com).”


Última edição em: 21/12/2024 02:04:30

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