https://www.publico.pt/2018/06/22/culturaipsilon/opiniao/nao-a-um-museu-contra-nos-1835227
Se, entre os séculos XV e XIX, Portugal foi um dos principais países esclavagistas, perguntamos com espanto: porque é que só agora a capital do país e de um antigo império terá um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas? Esta ausência dá pistas para se questionar o modo como o país lida com o passado e como tal passado ecoa no racismo sistémico de hoje. A sua concretização vem ainda assinalar um momento em que se está a pensar e a ressignificar a memorialística imperial, aspirando a uma cidade onde todos se sintam representados.
Nenhum assunto pode ser dado por terminado. Memorializar será lembrar e reactivar inclusive o mais difícil assunto, sendo um modo de manifestar repúdio pela violência que o mesmo contém. É o caso da mercantilização da vida humana que a escravatura pôs em marcha. Se, entre os séculos XV e XIX, Portugal foi um dos principais países promotor do esclavagismo, perguntamos com espanto: porque é que só agora a capital do país e de um antigo império terá um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas? Esta ausência dá pistas para se questionar o modo como o país lida com o passado e como tal passado ecoa no racismo sistémico de hoje. A sua concretização vem ainda assinalar um momento em que se está a pensar e a ressignificar a memorialística imperial, aspirando a uma cidade onde todos se sintam representados.
Também não é de somenos assinalar que a existência deste Memorial se deve unicamente à iniciativa de uma associação cidadã e não institucional, à qual se juntou o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. Falamos da Djass – Associação de Afrodescendentes (criada em 2016) que, através do instrumento Orçamento Participativo de Lisboa , conseguiu concretizar, numa mnemónica aberta à cidade, a urgente tarefa de não apagar da memória pública o horror do tráfico de pessoas, contrariando a narrativa hegemónica que assenta na celebração dos “Descobrimentos” e no colonialismo benevolente. Após um metódico e democrático processo de reflexão e de votação, o projecto vencedor foi o "Plantação: Pesadelo e Prosperidade", do artista angolano Kiluanji Kia Henda, que do qual resulta a instalação intitulada Plantação , uma plantação queimada a ser erguida este ano no Largo José Saramago, Campo das Cebolas, junto ao rio Tejo.
Em 2018, estalou a polémica de um eventual Museu das Descobertas ou Descoberta na cidade, com cartas assinadas, por cientistas sociais e agentes culturais, onde se podia ler: “Neste momento é injustificável e extemporâneo que se crie o Museu da Descoberta, se não se aproveitar para refletir sobre o passado colonial português e as suas ramificações no presente; assim como as políticas de memória da cidade de Lisboa” e a carta-manifesto “Não a um museu contra nós!”, assinada por mais de 100 pessoas negras, onde se denunciava o seguinte: “A ausência das nossas perspetivas nas instituições nacionais e nas discussões públicas está naturalizada e normalizada, rasurando-nos enquanto sujeitos históricos e enquanto contribuidores por excelência para a edificação da sociedade portuguesa nas suas diferentes vertentes”.
Temas como a escravatura e o colonialismo já eram trabalhados pela Djass, em articulação com a situação de desigualdade e discriminação das pessoas racializadas em Portugal, tornando assim perceptível a cadeia de sucessivos sistemas de opressão. Num contexto de descontentamento generalizado, a associação de afrodescendentes dinamizada, entre outros, por Beatriz Gomes Dias e Evalina Dias, lançou à votação do Orçamento Participativo, o projecto do Memorial. Uma vitória para a cidade e para a democracia cidadã, ver concretizada a vontade de “prestar homenagem às pessoas escravizadas, conferindo-lhes subjectividade e humanidade, reconhecendo o papel específico que Portugal teve no tráfico de escravos.”, refere Beatriz Gomes Dias, também deputada pelo Bloco de Esquerda (desde 2019) e cabeça de lista do mesmo partido para a Câmara Municipal de Lisboa (2021).
É importante nomear os princípios para se perceber o peso simbólico que esta conquista acarreta. As pretensões do Memorial são ambiciosas e necessárias: que a sociedade portuguesa questione as suas narrativas dominantes e o que se tem ocultado, um conhecimento sobre a história das pessoas negras, a violência e o racismo do passado e contemporâneo, frisando o papel de Portugal, a partir de Lisboa, na empresa esclavagista (com um intenso tráfico entre a costa da África Ocidental, Américas, Ásia e Europa) contrariando os falsos consensos lusotropicalistas e as humilhações. Com o Memorial, celebram-se as resistências africanas e negras, a sua antiga presença na cidade e o seu contributo para a sociedade portuguesa, projectando um mundo sem racismo. Para tal, será predominante o pendor pedagógico dirigido aos habitantes e visitantes da cidade, e futuras gerações, contribuindo para um conhecimento mais rigoroso e abrangente da História do país.
Para pôr o projeto em curso, a Djass criou uma metodologia de trabalho baseada num premente debate que estabelecesse objectivos e critérios para o Memorial, definindo o lugar ideal para a sua implantação, quais os artistas a convidar e a troca de informações sobre o assunto, com contributos de diversos campos de estudo e ação. Essa discussão foi encorpada, em várias fases, pelo Grupo Consultivo, constituído por pessoas ligadas ao movimento negro e antirracista, especialistas em história, estudos pós-coloniais, arte e museologia. Tive o prazer de fazer parte deste grupo, juntamente com Anabela Rodrigues, Ângela Barreto Xavier, Isabel Castro Henriques, Marta Araújo Gomes, Joacine Katar Moreira, Luzia Gomes e Flávio Almada, e pela Djass, a Beatriz e Evalina Dias. Foram encontros muito estimulantes, pela pluralidade e complementaridade de opiniões, e a sensação de participarmos no desenrolar de um processo colaborativo de abertura da cidade. Não se tratava apenas do Memorial, mas de um passo grandioso de extrema relevância numa Lisboa que se quer disponível a repensar, e sobretudo a agir, sobre a sua memória colectiva e pública. “Toda a ideia do projecto é que tenha uma participação pública. Nós não tivemos interferência nenhuma”, explicou Catarina Vaz Pinto, à data vereadora da Cultura.
Paralelamente, membros da Djass foram negociando as condições com a equipa técnica da Câmara Municipal de Lisboa, conseguindo avolumar o orçamento, tendo disponíveis 150 mil euros para a execução do Memorial. Outra garantia firmada foi a criação, numa segunda fase, de um Centro Interpretativo. Desde cedo, entre o grupo consultivo, percebemos que o Memorial (ao qual cumpria um princípio mais alusivo e menos figurativo e informativo) seria insuficiente para abarcar tantos propósitos. Tornou-se, então, imperativo uma componente museológica, que produzisse a contextualização histórica dos vários aspectos da escravatura, numa programação cultural dinamizada com debates públicos e exposições. Um dos pontos considerados fundamentais era salvaguardar a produção do discurso e o modo de o mostrar ao público. Ficou assim decidido que o Memorial, inicialmente proposto para a Ribeira das Naus, viria a ser edificado no Campo das Cebolas e que o futuro Centro Interpretativo, num edifício igualmente situado no Largo José Saramago, contará com a consultoria dos investigadores João Figueiredo e Judite Primo.
Grada Kilomba (Lisboa, 1968) é uma artista interdisciplinar, com raízes em São Tomé e Príncipe, Angola e Portugal e explora as questões da memória, trauma e pós-colonialismo. É autora do aclamado livro Memórias da Plantação (Orfeu Negro, 2018), uma compilação de episódios de racismo quotidiano. Kilomba apresentou “ O Barco”, nas palavras da artista: "uma simples composição de bancos, que imita detalhadamente uma nau com pessoas escravizadas”, estendendo-se como um jardim com o rio ao fundo.
Com esta peça, a artista quis subverter o imaginário de glória da expansão marítima, “narrativa inscrita nos vários monumentos públicos junto ao rio da cidade, que romantiza o passado histórico colonial, e que apaga um dos mais longos e horrendos capítulos da humanidade - a Escravatura”, pode ler-se no seu projeto a concurso.
O projeto de Jaime Lauriano (São Paulo, 1985), que vive e trabalha entre o Porto e São Paulo, convidava o "público à reflexão sobre as violências coloniais e a sua continuidade nos dias atuais.
Plantação, de Kiluanji Kia Henda
Ao longo de 1.000 m2 de uma área triangular, estende-se um canavial de 3 m de altura, composto por 400 canas-de-açúcar em alumínio negro, como referência aos 400 anos de escravatura e à resistência dos escravizados, por entre as quais se integra um anfiteatro semi-circular, de 12m de diâmetro.
Kiluanji Kia Henda, ao colocar uma plantação queimada, repensa a plantação como sistema de opressão e de trabalho forçado (veja-se a matriz da Casa Grande e Senzala nas roças do Brasil e de África), mas sobretudo como o dispositivo impulsionador “para a existência do tráfico de escravizados. Foram necessários braços para trabalharem na exploração das plantações de cana-de-açúcar”, diz em entrevista ao projecto ReMapping. Kia Henda quis assinalar um momento de viragem histórica, convocando na iconografia da plantação o sistema que despoletou e perpetuou a escravatura. Nas suas próprias palavras, “o início da escravatura está relacionado com a produção de cana-de-açúcar” e foi “fator central da perpetuação deste sofrimento”.
Assim, o memorial é também uma plantação de luto, um lugar de encontro e de reflexão “no centro da angústia”. Um espaço arquitectónico aberto à interpretação, no qual as memórias entram em diálogo com a arte pública para criar uma semântica e simbolismo próprios, potenciando a sua ressignificação ou novas narrativas de memória.
Iniciativas como o Memorial às Pessoas Escravizadas, e sobretudo pelo processo exemplar com que foi conduzido, dão-nos alguma esperança de uma memória, sempre reactivada e resignificada, numa ligação com o presente e num intuito pedagógico com o passado imperial, que subjugou e mercantilizou corpos como mão-de-obra tentando retirar-lhes a sua subjectividade de indivíduos, em nome da expansão de poder, ocupação de territórios, da extorsão de recursos e produção de riqueza.
É preciso, pois, rememorar este longo capítulo da História de Portugal, das viagens transatlânticas e numa cidade construída em parte com sangue de pessoas escravizadas, compradas por famílias ricas e comerciantes, nomeadamente para servir nas casas dos “senhores” e nas docas ao longo do rio Tejo e em inúmeros ofícios de manutenção da cidade.
Não é apaziguador
O passado inscreve-se no imaginário colectivo frequentemente regido por poderes públicos e sustentado pelos meios de comunicação e de transmissão. Ou seja, o passado depois de ter sido selecionado e reinterpretado segundo as sensibilidades culturais, as interrogações éticas e as conveniências políticas do presente, transforma-se em memória coletiva, sedimentando-a de modo sempre parcial. Assim, os debates em torno da memória são tensos, porque ligados aos anseios da atualidade, às expectativas do futuro e ao desvaler de histórias memorizadas ou silenciadas. Este Memorial de homenagem e de lembrança de pessoas escravizadas é um contributo inestimável. Como escreve o filósofo camaronês Achille Mbembe em Brutalisme "o dever de restituição e de reparação [são] os primeiros passos para uma verdadeira justiça planetária”.
Última edição em: 23/12/2024 12:01:40